Lidia Zuin http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br Jornalista e pesquisadora em futurologia. Mestre em semiótica, doutoranda em artes visuais, palestrante, professora e escritora de ficção científica. Thu, 27 Aug 2020 07:00:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Radicalizar a morte é refletir sobre a opressão além-vida http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/08/27/radicalizar-a-morte-e-refletir-sobre-a-opressao-alem-vida/ http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/08/27/radicalizar-a-morte-e-refletir-sobre-a-opressao-alem-vida/#respond Thu, 27 Aug 2020 07:00:47 +0000 http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/?p=503

Até 2016, o cemitério Greenwood em Waco, no Texas, mantinha uma cerca de separação entre o lado destinado aos brancos e aos negros. Foto de Rod Aydelotte

Quão difundido é o racismo, o machismo e o colonialismo? De acordo com o The Collective for Radical Death Studies, até a morte está sujeita a essas forças. Contando com a participação de diretores funerários, pesquisadores acadêmicos, ativistas, estudantes da área dos Estudos da Morte e “death practitioners” (algo como um profissional que trabalha com rituais funerários e de assistência à morte), o coletivo aborda a questão da morte a partir de uma perspectiva política, com o objetivo de remover os resquícios racistas, opressores e coloniais dentro do próprio campo dos Estudos da Morte, mas também nas práticas funerárias.

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À primeira vista, dedicar-se ao assunto pode parecer um exagero para algumas pessoas, mas, historicamente, cemitérios já contêm em si um elemento delimitador que vai além da diferença entre os vivos e os mortos. Afinal, nem todo mundo poderia encomendar uma tumba ou uma efígie feita por artistas como Donatello ou Michelangelo — isso era apenas possível à nobreza ou ao clero à época do Renascimento.

Durante o período da Peste Negra, tornou-se impossível administrar os corpos a serem enterrados ao redor das igrejas, como era costume à época. Por isso, ossuários e catacumbas foram preenchidos de ossadas anônimas que, mais tarde, seriam usadas como matéria-prima para a decoração de capelas e igrejas como a Cripta Capuchina, em Roma, ou o Ossuário Sedlec na República Tcheca. Feitos de crânios e ossos humanos, os lustres e altares dessas igrejas ossuárias não foram feitos a partir da ossatura de nobres falecidos, mas sim de cadáveres que foram depositados em valas comuns.

Em São Paulo, a diferença entre mortos ricos e mortos pobres é evidente nas tumbas e projetos dos cemitérios. O bairro da Liberdade, antes de se tornar um local de referência à cultura dos imigrantes asiáticos, era conhecido como Largo da Forca por se tratar de um local para onde os escravizados fugitivos eram enviados para serem executados por enforcamento. Ali foi construído o Cemitério dos Aflitos, onde eram enterrados, então demarcando uma separação clara entre os papéis e raças. Apesar do fim da escravidão, em países como os Estados Unidos, a segregação continuou firme até pouco tempo atrás. Apenas em 2016, a prefeitura da cidade de Waco, no Texas, tomou a decisão de remover uma cerca que dividia o cemitério Greenwood entre a parte destinada aos negros. Essa era a prática comum no país até os anos 1950, com cerca de 90% dos cemitérios públicos adotando a restrição.

No site do coletivo, contudo, há uma divisão temática para artigos e referências bibliográficas que tratam de assuntos como gênero, a relação das mulheres com a morte, a morte queer, as diferenças culturais e étnicas, bem como as decorrências do colonialismo, capitalismo e genocídio. Dentre as recomendações estão obras como “Gore Capitalism”, da mexicana Sayak Valencia e “Regarding the Pain of Others”, de Susan Sontag, mas também obras mais populares como “Confissões do Crematório”, de Caitlin Doughty, que ficou conhecida como uma crítica da industrialização dos processos funerários e também como uma militante da “boa morte”, isto é, uma maior naturalização, aceitação e discussão acerca do tema tão reprimido em nossa sociedade.

Por isso, o coletivo Radical Death Studies busca refletir sobre o campo dos Estudos da Morte a partir de uma perspectiva marginalizada e inclusiva, tentando romper a lógica segregativa do nós e eles. Em um post introdutório, Kami Fletcher reforça que essa prática separadora é algo que foi característico e fundamental em processos de colonização europeia, no imperialismo, na escravidão, nas discriminações, opressões e privilégios que vislumbramos ainda hoje. Em suas palavras,

“Sejam eles forçados/coagidos ou então assimilados ou aculturados, os sistemas de poder e privilégio foram passados através da maneira como se morre e de como se lida com a morte. É, portanto, urgente reconhecer como o colonialismo europeu — através da escravidão, guerra e genocídio — marginalizou, trivializou e deliberadamente negou a maneira como se morre e se lida a morte nas nações, culturas e pessoas consideradas “outras”. Uma vez que a regra colonial direta foi estabelecida e o genocídio se deu subsequentemente, ao longo do século 20 os cemitérios dos nativos norte-americanos não foram vistos como espaços sagrados, mas como descobertas a serem feitas por arqueólogos que assim criariam uma disciplina. Até 1990, a prática de escavação e destruição dos espaços funerários sagrados dos nativos americanos era respaldada pela descoberta histórica, de modo que expor ossadas e objetos funerários em museus dos EUA era algo normal e natural.”

Mais do que respeitar o espaço físico, Fletcher ressalta a importância de se respeitar a maneira como diferentes culturas e etnias entendem o conceito de morte e de morrer. Curiosamente, ela menciona os médicos Michael Anderson e Gemma Woticky, que possuem ascendência moicana e que afirmam que “a morte não deveria ser considerada um evento médico”, bem como o próprio fato de que não existe uma palavra para morte na língua nativa, o que já revela muito sobre como essa sociedade enfrentava a questão. Assim, Fletcher continua:

“A partir do fim do século 19, a maneira como os americanos (leia-se americanos brancos) lidavam com a morte era negando-a e relegando-a ao hospital. A morte se tornou desconectada da vida, de certa forma. É o exato oposto do que Anderson e Woticky argumentam. Anderson e Woticky reforçam claramente que entre os indígenas e as primeiras nações nativas, a morte não é apenas sobre o corpo, mas também do espírito, uma cura do espírito através da cerimônia.”

Por fim, Fletcher resume que entre os principais objetivos do coletivo está o desejo de acabar com o eurocentrismo que tem definido os rituais funerários ao redor do mundo, bem como a desconstrução dos modos históricos com os quais o privilégio branco invadiu os trabalhos e práticas funerárias, remover o foco excessivo nos cemitérios rurais e de origem cristã e, finalmente, aumentar a conscientização da sistemática opressão que se desemboca em mortalidade e fatalidade entre grupos marginalizados e entre indivíduos não-brancos.

Em um momento tão crítico quanto o da atual pandemia, a morte tem invadido os lares brasileiros e sobrecarregado hospitais. Logo no início da crise, temas como a Escolha de Sofia se tornaram um debate público, bem como as timelines começaram a ser preenchidas com postagens em memória dos falecidos. Com uma proposta de divulgar a “morte positiva” (death positivity), o blog do The Order of Good Death fez uma série de posts (em inglês) sobre dicas de como lidar com o momento e inclusive sobre como conversar sobre morte durante essa crise. Já no caso do coletivo Radical Death, foram ainda abordados como diferentes culturas tiveram que adaptar seus ritos funerários diante do risco de contaminação em aglomerações.

No entanto, um dos conteúdos que mais me marcou no blog do Radical Death foi justamente um artigo escrito por Tamara Waraschinski, no qual ela aborda a Teoria da Gestão do Terror e como a ansiedade perante a morte é algo que, de fato, todos os humanos compartilham. Com o assassinato de George Floyd em meio à pandemia, fica gritante como para pessoas marginalizadas o tema da morte não é apenas um medo, mas uma constância — é essa virada de chave que o coletivo Radical Death busca promover.

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Dark, ou o Prometeu pós-moderno: negação da morte e avanço científico http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/08/15/dark-ou-o-prometeu-pos-moderno-negacao-da-morte-e-avanco-cientifico/ http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/08/15/dark-ou-o-prometeu-pos-moderno-negacao-da-morte-e-avanco-cientifico/#respond Sat, 15 Aug 2020 07:12:45 +0000 http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/?p=496

Aviso: Este texto contém spoilers da série “Dark”.

Já houve outros momentos aqui em que fiquei em dúvida se não estava sendo monotemática ou influenciada demais pela minha atual pesquisa no doutorado, que estou em vias de concluir. Mas, ao que tudo indica (e o que também alguns me confirmam), os quatro anos de estudo não tiraram totalmente minha sanidade, e ainda consigo separar o joio do trigo. No caso, trago em pauta uma série que foi muito comentada nos últimos tempos, em especial devido ao seu encerramento — com agrados e desagrados de toda sorte.

Agora que acabou, sabemos que “Dark”, série alemã produzida pela Netflix, traz como tema central a viagem no tempo. Esse dado basta para que a obra apresente dois possíveis desdobramentos: clichês sem fim ou uma proposta nova e revigorante. “Dark” se encaixa na segunda opção.

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No Tilt, uma reportagem bastante esclarecedora esmiúça os temas e os conceitos explorados ao longo das três temporadas, além de um outro texto, de Rodrigo Petronio, que aborda o motivo pelo qual a série fez sucesso. No caso de Petronio, alega-se que “de ‘Doctor Who’, ‘2001’ e ‘Em algum lugar do passado’ a ‘Efeito Borboleta’ e ‘Interestelar’, as virtualidades contidas nas viagens espaciotemporais estão entre os recursos narrativos mais potentes para se repensar os fundamentos da realidade. Nesse sentido, ‘Dark’ é excepcional. Já nasceu clássica.”

Uma das razões para ser tão clássica é que, entremeada à proposta, exibe-se uma narrativa arquetípica tão antiga quanto a cultura grega, uma vez que o enredo de ‘Dark’ muito se aproxima do mito de Prometeu —  amplamente utilizado em histórias de ficção científica (“Prometheus”, de Ridley Scott, é o exemplo mais literal).

Existem diferentes versões do mito segundo autores variados, como é o caso de Hesíodo e Ésquilo, mas, de maneira geral, o que o mito de Prometeu narra é a história de Prometeu e de seu irmão, Epimeteu, que foram incumbidos com a tarefa de criar os seres humanos e os animais. Epimeteu se encarregou da obra, conferindo coragem, inteligência, garras, carapaças e asas aos animais, mas quando chegou a vez do homem, só restava barro. Epimeteu pediu ajuda ao irmão Prometeu, que então roubou o fogo dos deuses e o entregou aos humanos, assim possibilitando a superioridade dos homens perante os outros animais. No entanto, o fogo era posse exclusiva dos deuses e, por isso, Zeus ordenou que Hefesto acorrentasse Prometeu ao cume do monte Cáucaso, onde todos os dias uma águia ou um abutre dilaceraria seu fígado que, no entanto, regenerava-se continuamente. Isso se repetiria por 30 mil anos.

Na tragédia grega “Prometeu Acorrentado”, de Ésquilo, o protagonista teria ficado responsável por ensinar aos humanos a escrita, a matemática, agricultura, medicina, bem como a própria entrega do fogo como um elemento tecnológico capaz de impulsionar o desenvolvimento das civilizações. Nessa versão, descobrimos que Prometeu exerceu um papel importante, ao possibilitar que Zeus e outros deuses vencessem batalhas, o que torna o pedido de punição um ato também de traição. E assim, no senso comum, associar algo ao mito de Prometeu é concluir que, como na máxima, a curiosidade matou o gato: há coisas com as quais os homens não devem mexer se não quiserem ser punidos e amaldiçoados. É a mesma lógica da maçã oferecida a Adão por Eva, na narrativa bíblica, ou do mito de Pandora e da abertura de sua caixa misteriosa.

Não é à toa, portanto, que temos em “Dark” a alusão clara às personagens de Adão e Eva como seres fundantes da humanidade ou daquela cosmogonia que se forma no seriado. Na realidade, como descobrimos ao longo das temporadas e, em especial, na última, eles não são exatamente protagonistas — sequer têm controle sobre suas próprias vidas. O tema do livre arbítrio é frequentemente abordado, mas pouco aprofundado, afinal, o enredo se desdobra na ilusão de que, sim, humanos devem seguir as regras do jogo do tempo, porém talvez seja possível enganá-lo e assim retornar a um suposto paraíso.

Na terceira temporada, descobrimos que a única forma de impedir toda a desgraça pela qual as famílias sofrem estava na origem de tudo: quando H. G. Tannhaus põe sua máquina do tempo para funcionar pela primeira vez e, assim, cria as dimensões de Adão e de Eva: ambas experienciam o apocalipse independentemente do que seja feito por Martha ou Jonas. O fim da série, portanto, culmina no esclarecimento de que não havia possibilidade de driblar o apocalipse e que, na verdade, todas as vidas e tempos estavam bagunçados e entremeados de forma insolúvel. A única saída estava na descoberta de que aquelas duas dimensões nas quais a série se desdobra até a terceira temporada nada mais eram do que um efeito colateral negativo da empreitada de Tannhaus.

Mas ele não havia sido o primeiro a tentar bagunçar o tempo. Seu bisavô teria fundado a seita do Sic Mundus para descobrir como viajar no tempo. Esse interesse não aconteceu por curiosidade científica, mas porque Heinrich não conseguia aceitar a morte de sua esposa, Charlotte. No caso de H. G. Tannhaus, que é quem consegue criar a máquina do tempo, o cientista-escritor havia perdido seu filho, nora e neta em um acidente de carro logo após uma discussão entre pai e filho. De uma coisa tão “trivial” (no sentido de que poderia acontecer com qualquer um), dá-se o surgimento de universos preenchidos por sofrimento e mais morte.

Quando Mary Shelley escreveu “Frankenstein”, em 1818, ela não só inaugurou o gênero da ficção científica como também resgatou o mito de Prometeu — aliás, o título completo do romance é “Frankenstein, ou o Prometeu moderno”. Nesta obra, a escritora britânica usa como recurso literário a história de um homem que se dedica a chegar ao Pólo Norte com o desejo de realizar uma descoberta científica, mas é interceptado por um estranho que é resgatado por sua tripulação e que lhe conta a própria história como advertência. Este homem, Victor Frankenstein, narra a sua vida desde a infância feliz até a perda de sua mãe por uma doença e, então, sua busca por conhecimento e as descobertas científicas em seu período de estudante universitário.

Transitando entre autores considerados místicos e novas descobertas na área da química, Frankenstein se vê capaz de criar uma vida, tal qual o homúnculo vislumbrado pelos alquimistas. Só que essa nova vida é monstruosa e, por isso, seu criador a rejeita. Permeada pelo excessivo drama comum ao romance gótico, a trajetória do cientista então é interceptada por doenças, surtos e perdas de pessoas amadas pelas mãos do monstro que ele próprio criou. Somos também convidados a conhecer mais sobre a subjetividade do monstro e entendemos que ele, em si, não nasceu corrompido, mas que sua aparência física sempre foi um empecilho para que fosse aceito e incluído na sociedade. Resignado perante sua condição, ele pede a Frankenstein que dê vida a uma criatura à sua imagem, porém do sexo oposto. O cientista se nega, e então sobrevêm mais mortes, pela mão do monstro ou como desdobramento de seus atos.

Shelley aborda o desejo de Frankenstein em dominar a ciência da vida, para que possamos nos libertar da morte, das doenças e da infelicidade. Assim como a personagem Mina, de “Drácula”, escrito por Bram Stoker, pede que o homem a livre de toda a morte, Frankenstein também parte desse pressuposto e acaba criando um monstro que se volta contra o criador, ou nas palavras do mesmo: Victor pode ser seu criador e o monstro a criatura, mas ele o fez mais forte que os homens e isso o torna superior e, portanto, seu mestre. Assim, Shelley traz à tona o mito de Prometeu no sentido de que Frankenstein teria roubado o fogo dos deuses através da obtenção de conhecimentos científicos que não deveriam estar nas mãos dos homens. A tecnologia pode, à primeira vista, parecer positiva e promissora, mas também pode dar em tragédia e infortúnio.

Na série “Penny Dreadful”, vemos uma interpretação da relação entre Frankenstein e seu monstro mais próxima àquela descrita por Shelley

Quando Shelley escreveu “Frankenstein”, dava-se início ao processo que ficou conhecido como Primeira Revolução Industrial. A transição de um mundo arcaico para um mundo tecnológico, movido a vapor, não foi vivido completamente à base do entusiasmo, e isso fica refletido no romance gótico e em seu subsequente desdobramento na ficção científica e no horror.

Com o tempo, a associação entre progresso científico e tecnológico junto ao medo ficou mais fraca — isso fica patente em obras otimistas de autores como Julio Verne ou mesmo “A Rainha do Ignoto“, aqui no Brasil. Mas é fato que, até hoje, somos confrontados por narrativas de sucesso comercial que se aproveitam desse binômio entre progresso científico e suas consequências negativas — “Black Mirror” é o mais contemporâneo representante nesse sentido.

Quando concluímos a série “Dark”, entendemos que Martha e Jonas decidem impedir que a máquina do tempo seja construída e assim suas dimensões e tragédias não se desenrolem, isto é, eles abdicam da chance de existir. Talvez esse seja o único sopro de otimismo perante a ideia de livre arbítrio, porque Martha e Jonas entendem que só poderão evitar o apocalipse e todo o sofrimento em torno dele se o gatilho que levou Tannhaus a criar a máquina do tempo fosse evitado. Ao impedir que o filho do cientista morra com sua família, a vida segue na dimensão “original”, e Martha e Jonas, ou Adão e Eva, junto com suas dimensões, deixam de existir. Isto é, para que mais mortes e sofrimento não fossem causados, Martha, Jonas e todos os demais personagens da série abdicaram de sua existência.

Somos os únicos seres vivos que sabem que irão morrer e, diante disso, criamos subterfúgios que nos dão sentido para continuar vivendo, apesar do destino derradeiro. Nem sempre os subterfúgios são suficientes para preencher nossa angústia, nem sempre as religiões entregam uma narrativa que nos consola, então partimos para a ciência e desafiamos os deuses, tentamos roubar seu fogo, mas somos, em tese, sempre punidos em um círculo vicioso de perdas e danos.

Não temos um abutre comendo nosso fígado, mas temos essa “coceira” da consciência e da ambição humana que perpassa as gerações, como em “Dark”. Quando Martha e Jonas eliminam a “maçã” que Tannhaus poderia ter mordido, e assim ser expulso do paraíso, criando consigo novas camadas de um inferno dantesco, eles impedem que todos sejam condenados à danação — mas também barram uma descoberta científica grandiosa.

É nesse sentido que a ética se desdobra como um campo filosófico importantíssimo na contemporaneidade. Afinal, como na época de Mary Shelley, também estamos em vias de um processo de nova revolução industrial (a quarta, segundo o Fórum Econômico Mundial), e certas escolhas científicas e tecnológicas têm a chance de se desdobrar em um apocalipse que ainda não previmos. Não temos (ainda?) uma máquina do tempo, mas temos a capacidade de pensar o futuro, especular desdobramentos e refletir sobre possibilidades e consequências. Os estudos do futuro e a própria ficção científica podem contribuir muito com a inovação tecnológica e a discussão em torno dela.

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Mesmo nostálgico, VirtuaVerse renova o cyberpunk em jogo point-and-click http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/07/29/mesmo-nostalgico-virtuaverse-renova-o-cyberpunk-em-jogo-point-and-click/ http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/07/29/mesmo-nostalgico-virtuaverse-renova-o-cyberpunk-em-jogo-point-and-click/#respond Wed, 29 Jul 2020 07:00:36 +0000 http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/?p=485

Já faz alguns anos que venho acompanhando o trabalho da gravadora finlandesa Blood Music. Apesar de pequena, seu alcance mundial foi conquistado com o lançamento de álbuns icônicos e de boxes para colecionadores de bandas de metal como Emperor e Moonsorrow. Atualmente, a gravadora tem se dedicado à publicação de artistas da música eletrônica retrowave, como é o caso de bandas como Perturbator e GosT.

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Depois de publicar uma entrevista, em inglês, com a Perturbator, tive ainda a oportunidade de saber de antemão sobre uma nova empreitada da Blood Music: tornar-se produtora de jogos. Apesar de parecer uma ideia tão desconexa, a verdade é que a gravadora já havia feito outros trabalhos com o artista de pixel art Valenberg, como foi o caso do incrível clipe de “Sentient” para a Perturbator. Ou seja, a estética de videogame sempre esteve presente na identidade da Blood Music. Agora, junto com a desenvolvedora Theta Division Games, eles tiveram a oportunidade de lançar o jogo de aventura cyberpunk point-and-click “VirtuaVerse“.

Escrito e sonorizado pela banda Master Boot Record, também pertencente à Blood Music, o jogo é o máximo clichê do cyberpunk — o que não necessariamente é ruim. Na realidade, como já abordei aqui em outra oportunidade, vivemos em tempos metamodernos em que a nostalgia reina entre nossos gostos e perspectivas, que se sustentam na postura de postar memes para esconder a depressão. A narrativa do jogo VirtuaVerse segue mais ou menos essa ideia a partir do protagonista Nathan, que precisa resolver o desaparecimento de sua namorada, uma grafiteira em realidade aumentada. 

Somos, então, convidados a navegar pelo apartamento de Nathan e por uma cidade futurista toda feita em pixel art, nos mínimos detalhes. Por se tratar de um jogo point-and-click, certos elementos importantes para o seguimento do jogo podem estar escondidos em objetos de pouco destaque na tela e, nesse sentido, VirtuaVerse é um jogo bastante desafiador para quem não está acostumado a esse gênero, que teve seu pico nos anos 1980 e 1990.

Nathan tem um humor ácido e, muitas vezes, ele encontra personagens de personalidade ríspida ou mesmo caricata: artistas de grafite em realidade aumentada com sua própria linguagem de sinais visuais, hackers em empreitadas obscuras contra uma grande corporação, moradores de rua viciados em realidade virtual, traficantes de drogas estimulantes e vendedores de lojas de dispositivos retrô contrabandeados. Há momentos em que o jogador pode ter certeza de que se trata de uma narrativa millennial, como quando Nathan encontra com um grupo de jovens competidores de corrida de drones que zombam justamente da idade do protagonista. Mas, assim como muitos millennials, também Nathan sabe que, de fato, há muita coisa rolando e que ele não está acompanhando, porém não é nada assim tão diferente do que ele já vivenciou antes, ele só está “velho” e cansado demais para esse tipo de coisa — tipo o sedutor do TikTok.

É fato que quem escreveu o roteiro do jogo está por dentro das novas tecnologias e de comportamentos de subcultura. Isso aparece não apenas quando se discute sobre uma suposta última banda que faz shows ao vivo (e que, na verdade, também só usava uma gravação), mas também em sutis piadas como quando Nathan precisa de créditos em criptomoeda e, ao dialogar com alguns NPCs, estes passam minutos ditando os números e letras que compõem a identificação de sua carteira digital. É aí que o protagonista brinca: e pensar que as criptomoedas foram criadas para facilitar a nossa vida.

Por outro lado, VirtuaVerse ainda conta com outros “mundos” para qual o protagonista viaja, então mostrando outras possibilidades de futuro que não só se definem a partir da megalópole de chuva eterna e arranha-céus com publicidade holográfica. Em Nuwaka, encontramos uma possível representação de uma cidade afrofuturista em que tecnologia se mistura com natureza e ancestralidade. A experiência de novas perspectivas de futuro se dá não apenas de forma visual e através dos novos personagens apresentados ali, mas também pela da trilha sonora cuidadosamente composta para arrematar o pacote de viagem.

Já em Jakharrak, vemos um futuro que mistura o deserto avermelhado de “Duna” e de “Blade Runner 2049”, que eu imagino ter mais conexão com o universo imaginado no filme “Warhead”, de 1990. Ali se combina o cenário de um apocalipse árido com a carcaça de robôs descartados no “fim do mundo” — uma imagem que aparece em vários outros títulos, em especial no inferno robótico de “Detroit: Become Human”. Por fim, em Satnajoskull ainda descobrimos um futuro em que a ancestralidade novamente se mistura à tecnologia — no caso, em narrativas nórdicas. É interessante ver como VirtuaVerse traz muito da perspectiva magia-tecnologia que encontramos em sistemas de RPG como Shadowrun, refletindo sobre a tendência de buscar transcendência, seja na ancestralidade ou na religião, mas também através de uma ciência e tecnologia que possam traduzir desejos outrora fomentados apenas pela fé, como descreve Yuval Noah Harari em “Homo deus”.

Assim, VirtuaVerse é muito mais do que um jogo nostálgico que combina os clichês do cyberpunk com os clichês dos jogos point-and-click. É nos detalhes dos diálogos e da adaptação dos cenários que descobrimos um futuro de tecnoxamãs e de grafiteiros em realidade aumentada, e assim descobrimos que uma coisa não elimina a outra. Se a já desgastada citação de William Gibson sobre o futuro (“ele já está aqui, porém não distribuído”) quer dizer algo, o que sabemos em VirtuaVerse é que o futuro está, sim, distribuído. Só não precisa ser tão homogêneo quanto a globalização quer torná-lo seja na Terra ou no espaço, há lugar para um futuro em sua forma plural.

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Já flertou com o abismo hoje? ‘The Sinner’, da Netflix, e o caos de existir http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/07/18/ja-flertou-com-o-abismo-hoje-the-sinner-da-netflix-e-o-caos-de-existir/ http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/07/18/ja-flertou-com-o-abismo-hoje-the-sinner-da-netflix-e-o-caos-de-existir/#respond Sat, 18 Jul 2020 07:00:19 +0000 http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/?p=475

Um dos maiores sucessos da plataforma Netflix, o seriado “The Sinner” teve sua terceira temporada recentemente lançada no Brasil. Depois de conquistar a audiência com uma primeira temporada protagonizada pela atriz Jessica Biel, a série retornou com um enredo que a mantém na classificação das narrativas de crime “whydunnit”, isto é, histórias em que não importa quem cometeu o ato, mas sim o motivo.

Com a recorrente presença do detetive Ambrose, interpretado por Bill Pullman, “The Sinner” conta não apenas com o ofuscante talento do ator como também a presença de vilões bem construídos e representados, como é o caso de Jamie (Matt Boomer) e Nick (Chris Messina).

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Enquanto a primeira temporada tratou de uma dona de casa que comete um crime após receber um gatilho de um trauma reprimido, a segunda temporada tratou de seitas e como elas podem levar pessoas comuns a cometerem atos condenáveis — para quem assistiu à série documental “Wild, Wild Country“, também da Netflix, essa temporada de “The Sinner” pode ser especialmente interessante. Fãs de “True Detective” podem encontrar no seriado produzido por Biel um substituto enquanto novas temporadas não são lançadas: trata-se de uma narrativa cheia de simbolismos, questões psicológicas e, em especial nessa terceira temporada, também filosóficas.

A mais recente parte de “The Sinner” conta a história de Jamie, um professor que mora em Dorchester, subúrbio de Nova York, prestes a se tornar pai. Apesar de levar uma vida comum e ser casado com uma mulher incrível, Leela (Parisa Fitz-Henley), há uma “coceira” que sempre o perturba. Ao prestar atenção em seu entorno, em especial durante os momentos no trem, Jamie frequentemente se incomoda com o comportamento e as atitudes de pessoas que jogam lixo no chão ou que ouvem música sem fone de ouvido. A pergunta que é fica é: por que as pessoas agem desse jeito, ou melhor, por que é permitido que sejam assim?

Encurralado pela opressiva normalidade e privilégio de sua vida versus a inconformidade pelo mundo à maneira como ele é, Jamie decide retomar contato com um amigo da faculdade, Nick. A trama se desenvolve de forma não-linear, sendo frequentemente “perturbada” pela inquietante presença dessa figura do passado do protagonista. A interpretação de Messina, que tem como destaque os olhos fixados e a expressão intensa, deixa à primeira vista uma impressão de que talvez Nick tivesse sido um affair do passado do professor (até mesmo sua esposa questiona isso), mas, na verdade, não se trata de uma tensão sexual: Nick, na realidade, foi uma pessoa que conseguiu diagnosticar essa inquietação de Jamie em uma aula que frequentaram na faculdade e, a partir daí, nasceu uma amizade baseada em citações de filósofos como Friedrich Nietzsche.

A série não é ingênua ao usar os principais termos e conceitos do filósofo alemão, como é o caso do niilismo, do conceito de “super-homem” (Übermensch), ou de moralidade de rebanho. Na realidade, em muitos momentos essas ideias são resgatadas com certo deboche, considerando que muitas vezes são adolescentes revoltados que se sentem atraídos por essas perspectivas do filósofo que, por outro lado, também foi apropriado pelo regime nazista. Em “The Sinner”, não há nenhuma referência a esse último ponto, mas em especial à questão de o indivíduo se descobrir superior ao enxergar a sociedade do alto, a partir de um ponto de vista separado e altivo, acima da moralidade de rebanho e que, portanto, está predestinado ao sucesso e à singularidade. Ao assumir que nada faz sentido, que não há um motivo para a existência ou que a moralidade e a ética de nossa sociedade são ideais postiços, Nick e Jamie supõem que é abraçando o caos que poderão transcender a normalidade e se tornarem livres — ou, nas palavras do próprio Nietzsche, “É preciso ter o caos dentro de si para gerar uma estrela dançante”.

Curiosamente, Nick prova-se certo ao desenvolver uma carreira com a qual enriquece, enquanto que Jamie preferiu seguir uma vida mais pacata. Nick aparentemente não possui nenhum relacionamento amoroso ou qualquer conexão com sua família, enquanto Jamie é casado e está à beira de mais uma crise. Em uma brilhante cena na qual Jamie reflete, angustiado, sobre qual é o objetivo de trazer uma nova vida ao mundo, Leela retruca: sua inquietação parece mais um conflito elitista e clássico de um homem branco. A discussão não gira em torno de uma abordagem caricata ou “militante”, mas deixa nas entrelinhas a ambígua situação em que as atitudes e pensamentos de Nick e Jamie encontram ressonância: essa (não tão) nova classe de homens que se sentem superiores, que flertam com ideais opressivos e que geralmente são indexados a partir do conceito de “incel” ou celibatários involuntários.

Filmes como “O Clube da Luta”, ou mesmo a mais recente adaptação de “Coringa“, protagonizada por Joaquin Phoenix, são exemplos de obras que condensam esses pensamentos de retroação entre uma sociedade que maltrata e isola o indivíduo, assim moldando-o em uma revolta que devolve a violência sofrida. Enquanto as duas obras passam brevemente por temas políticos e econômicos, ao criticarem a maneira como o capitalismo funciona, “The Sinner” foca mais na psicologia, em uma sociologia de como nos esquecemos de que nada faz sentido, apenas nos anestesiamos em nossos papéis sociais no teatro da normalidade. Jamie atiça o detetive Ambrose a olhar para o abismo e ver a si mesmo como uma pessoa que também está arruinada e machucada pelo que a sociedade lhe devolveu, mas Ambrose tem como técnica justamente utilizar-se da empatia como forma de convencer o suspeito a entrar em seu jogo e, então, cair em sua armadilha.

A terceira temporada de “The Sinner” é especialmente envolvente, com vários momentos que parecem viradas de chave. Alguns podem sentir que o final da temporada foi súbito demais e que talvez não tenha honrado a complexidade das personagens, mas quando levamos em conta que Jamie nunca passou por uma autodescoberta  — fora apenas manipulado pela toxicidade de sua amizade com Nick –, entendemos que ele nunca realmente abraçou o caos. Diferentemente de Nick, que conduz a própria morte com uma frieza psicopata, Jamie é um perpetrador como os demais vilões das temporadas passadas. Aqui, importa menos quem é o ator dos crimes do que a razão de cometê-los e, nesse caso, “The Sinner” continua prova que a loucura (ou o mal) está mais perto do que imaginamos. Só precisamos de um empurrãozinho.

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O que você faria se a ciência comprovasse que Deus não existe? http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/06/27/o-que-voce-faria-se-a-ciencia-comprovasse-que-deus-nao-existe/ http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/06/27/o-que-voce-faria-se-a-ciencia-comprovasse-que-deus-nao-existe/#respond Sat, 27 Jun 2020 07:00:03 +0000 http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/?p=460

(Foto: Alexander Andrews/Unsplash)

Aviso: O texto contém spoilers do conto “Omphalos”, de Ted Chiang

Um dos melhores conselhos que já recebi foi o seguinte: quando estamos estudando algum tema, parece que ele nos persegue. Conseguimos vê-lo em tudo, mesmo quando não há conexão. Quem me deu essa dica o orientador de minha tese (que está em vias de conclusão), focada na tentativa de sobrevivência à morte por meio da memória imagética. Tenho lido muita coisa sobre consciência da morte, sobre como humanos lidam com isso do ponto de vista filosófico, artístico e psicanalítico. Por acaso, acabei conhecendo o livro “A Negação da Morte”, de Ernest Becker, em uma palestra que nada tinha a ver com o assunto, mas lá foi citada e assim me serviu de próxima leitura.

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A obra, que ganhou o prêmio Pulitzer em 1974, foi escrita por um antropólogo cultural e não por um psicanalista, mas todo o conteúdo se baseia em uma análise histórica e semiótica de como autores como Kierkegaard, Freud, Rank ou mesmo Nietzsche trataram da particularidade humana de ser consciente da própria morte.

Depois de terminar a leitura desse livro, fui ler a coletânea “Exhalation” de Ted Chiang, autor sobre o qual já falei, em outra oportunidade, aqui na coluna. Talvez por já estar acostumada ao seu estilo de escrita, ou por essa coletânea ser definitivamente  melhor do que “Stories of Your Life and Others”, encontrei nela alguns contos bastante intrigantes, em especial “Omphalos”, ou onfalo, no português.

O termo, que no grego antigo significa “umbigo”, também remete a um artefato que aborda o que seria o epicentro da criação do mundo. No conto, o autor reflete sobre o tema explorado no livro “Omphalos: An Attempt to Untie the Geological Knot” (1857), de Philip Henry Gosse. É nessa obra que se discorre a hipótese de Omphalos, isto é, de que o mundo físico em que vivemos é apenas uma ilusão criada por Deus. Na realidade, o que Gosse pretende é se aproximar da narrativa bíblica de origem do mundo, mas com olhar mais científico, tentando sustentá-la de forma racional e, se possível, empírica. E é exatamente essa a postura da protagonista do conto de Chiang (que, aliás, como autor de ficção científica, preocupa-se muito em ser cientificamente verossímil e correto): a arqueóloga Dorothea Morrell.

A história se desdobra nas orações feitas por Dorothea que, apesar de ser cientista, compartilha com seus colegas de profissão a crença de que Deus, de fato, existe. Sabemos que muitos cientistas como Isaac Newton acreditavam em Deus ou eram cristãos, mas, no universo criado por Chiang, a Igreja Ortodoxa se manteve como um pilar científico, de modo que fé e ciência se equilibram, até que Nathan McCullough, diretor do Museu de Filosofia Natural (campo do conhecimento precursor às ciências naturais, como é o caso da física), está em vias de publicar um artigo científico que comprovaria a inexistência de Deus ou, na realidade, de que a existência da humanidade não era um milagre ou parte de um plano divino maior.

Nesse universo criado por Chiang, cientistas e religiosos compartilham da premissa de que a Terra surgiu há 8.912 anos. Isso é reforçado a partir de objetos antigos, como lâminas de árvores ancestrais que, através de seus círculos de crescimento, demonstram sua idade até que alguns exemplos têm o miolo liso por se tratarem de árvores primordiais, isto é, as primeiras árvores a serem criadas ou surgidas no mundo. Em outras palavras, os cientistas de “Omphalos” não estão pesquisando para tentar descobrir a origem das coisas, mas sim o propósito delas nos planos divinos e, em especial, qual seria a nossa razão de existir, enquanto espécie.

O exercício especulativo de Chiang é um primoroso exemplo de como uma boa ficção científica combina fatos verdadeiros e científicos com possibilidades lógicas e convincentes o bastante para que o leitor tenha sua descrença suspensa. O artigo a ser publicado por McCullough seria de um astrônomo que observa a estrela 58 Eridani, análoga ao nosso Sol, mas que fazia parte de um extraordinário sistema geocêntrico. Ou seja, a estrela é o corpo que orbita em torno do planeta, e não o contrário. Esse planeta, por sua vez, também tinha características muito parecidas com a da Terra e, em intervalos de 24 horas, seu movimento oscilava entre se direcionar à Terra e se afastar. Para Lawson, há três possíveis hipóteses: ou a humanidade foi um apenas um teste para que Deus desenvolvesse a verdadeira e aperfeiçoada civilização (também hipotética) de 58 Eridani, ou então seríamos o plano final divino, ou apenas um efeito colateral não intencional.

Dorothea não se dá por convencida pelas hipóteses, até que McCullough argumenta que, na linguística, filólogos não conseguem explicar a multiplicidade de línguas que, por sua vez, não derivam de uma suposta língua primordial, por exemplo, o indoeuropeu. Em outras palavras, os demais idiomas foram criados ao longo do tempo pelos próprios humanos, assim como a escrita, afinal, não há registros escritos pelos humanos primitivos. Se, do ponto de vista científico desse universo, pesquisadores estariam desafiados a tentar entender os motivos de todas as coisas e, assim, reforçar sua fé, o que significa entender que nada tem um sentido intrínseco e que não há um plano divino maior?

No filme “The Tree of Life”, o casal interpretado por Brad Pitt e Jessica Chastain perde um filho. Em um dos monólogos mais marcantes, a personagem de Chastain dialoga com Deus sobre o propósito da vida

McCullough dá como exemplo uma tragédia pessoal, a perda de um filho que morreu de influenza. Se, de fato, nada tem razão de ser ou se conecta a um plano divino maior, a morte de seu filho não faz sentido nenhum. A dedicação à carreira científica de Nathan, portanto, era uma maneira de tentar entender, decupar esse plano divino e que, apesar de as convicções pessoais levarem a questionamentos, não há como negar os elementos que compõem a fisicalidade do mundo.

Em seu trabalho, McCullough chegou a encontrar evidências que lhe pareceram ser “marcas d’água” da ação de Deus, e isso teria lhe dado forças para sobreviver àquele trágico momento. No entanto, a descoberta de um sistema tão parecido com o nosso só demonstra que não há nada de único e milagroso na Terra e na humanidade, então todas as descobertas científicas nada têm a ver com o desvendamento de um motivo maior. Contudo, Dorothea argumenta que, apesar de a ciência poder ser usada como uma forma de amenizar nossas dores existenciais, ela está, acima de tudo, comprometida com a busca pela verdade, uma constatação que McCullough, por sua vez, rebate: “A ciência não é apenas uma busca pela verdade. É a busca por um propósito”.

Diante disso, Dorothea também começa a questionar qual é o sentido de seu trabalho: que diferença faz dedicar-se às escavações se tudo é irrelevante, se nada faz sentido ou compõe um plano maior? Mas, diferentemente da comunidade científica, a Igreja não se demonstrou tão abalada diante da descoberta, afinal, “a Igreja como uma instituição sempre foi capaz de derivar suas forças a partir da evidência quando ela é útil e ignorar quando não é”. Por mais que a Igreja aceitasse que a história de Adão e Eva não é completamente verdadeira, diante da evidência dos fósseis de hominídios por todo o planeta, a narrativa permaneceu como uma alegoria na qual as pessoas se baseiam. Mas, como cientista, Dorothea sempre teve sua fé calcada na evidência e, se ela demonstrou que a Terra não é o centro (ou umbigo) do universo, então qual é o ponto de existirmos?

Ernest Becker, em “A Negação da Morte” aborda essa questão a partir de outra perspectiva, a da consciência da morte. Qual é o propósito de acordar todos os dias, escovar os dentes, tomar banho, alimentar-se e trabalhar se, independentemente dos seus hábitos, você irá inevitavelmente morrer — mais ou menos rápido, mais ou menos dolorosamente, mais ou menos aleatoriamente? Becker defende que não caiamos nesse absurdo niilista, ao depararmos com a verdade racional da existência humana, reprimindo esse conhecimento através de neuroses que, neste caso, são positivas, porque encontramos narrativas e sentidos postiços que nos ancoram e nos dão sentido à vida. Para Kierkegaard, a melhor forma de preencher esse vazio existencial é através da religião, enquanto Freud teria buscado obsessivamente substituir esse apoio na psicanálise e na ciência.

O que vemos hoje, e que já foi debatido aqui também, é que a inovação tecnológica e científica se tornou a nova grande narrativa sobre a qual o mundo secular se debruça. Como Harari argumenta em “Homo deus”, estamos vivendo um momento no qual a tecnologia será capaz de tornar real aquilo que antes era apenas apoiado pela fé e por alegorias. O fim da morte, por exemplo, almejado pelos transumanistas, é uma dessas “neuroses” que o homem contemporâneo encontrou para dar sentido à vida. E quando eliminamos a morte da equação?

Para Becker, quando Freud desenvolveu sua teoria psicanalítica, ele estava tão obcecado em torná-la o centro do seu mundo que o peso de acreditar em si mesmo e nas suas ideias ficou grande demais para um indivíduo. Acreditar em Deus, seguir e praticar uma religião significa apoiar-se em algo maior do que nós mesmos enquanto indivíduos, é nos colocar dentro de uma narrativa em que somos um personagem encaixado, com destino, propósito e missões.

Religiões, ideologias, filosofias, ciências: todos esses campos do conhecimento, da cultura e da arte são grandes categorias que nos orientam, mas que, em última instância, não têm um propósito intrínseco senão o de tentar conciliar a nossa existência dupla como animal e como ser simbólico, como defende o autor.

Voltando ao início deste texto (sobre o conselho de meu orientador, de tentar separar o joio do trigo quando estamos muito contaminados pelo nosso objeto de pesquisa): as duas obras que “caíram no meu colo” de fato fizeram sentido e agregaram para a minha pesquisa. Mas, como é que elas chegaram até mim? Parte de um plano divino? Um dia, durante um jantar, ouvi de colegas de trabalho que minha capacidade de escrita e pesquisa eram, na realidade, uma capacidade mediúnica e que espíritos, entidades extraterrestres, ancestrais ou qualquer coisa do gênero estariam me direcionando e canalizando essas mensagens que concretizo, por exemplo, neste texto. Essa é a premissa que Chiang tenta quebrar: se fosse cientificamente comprovado que não há espíritos, entidades extraterrestres ou qualquer outra criatura divina nos guiando na nossa jornada, como lidaríamos com isso?

Uma outra sugestão está na obra de Vilém Flusser, quando ele fala que a realidade não se baseia em lógica de causalidade, nem de fatalidade (no sentido de existir um destino), mas sim do caos: as coisas acontecem aleatoriamente e, mesmo que haja fundamentação científica e empírica, o próprio fato de o Universo existir foi uma aleatoriedade. Para lidar com essa perspectiva filosófica, vamos precisar de mais do que livros e aulas — vamos precisar de terapia. E isso é, justamente, uma das saídas também vislumbradas por Becker: na figura do psicanalista, encontramos alguém que consegue organizar nossa vida e nossa realidade em narrativas e nos conduzir à reflexão e crítica. Vai de cada um. Ou, como se diz no inglês, “pick your poison”.

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Estamos vivendo ou apenas fazendo lives? http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/06/08/estamos-vivendo-ou-apenas-fazendo-lives/ http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/06/08/estamos-vivendo-ou-apenas-fazendo-lives/#respond Mon, 08 Jun 2020 15:00:27 +0000 http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/?p=446

O filme “Cam” (2018) fala da história de uma cam girl, sua rotina de lives e o fim de sua sanidade devido aos pedidos de seus seguidores.

Logo no início da quarentena, fomos lentamente nos adaptando a um momento inédito, para o qual não estávamos totalmente preparados. Impedidos de trabalhar fora de casa ou de sequer sair dela, nossa atenção ficou focada em ferramentas digitais que poderiam emular ou substituir certas atividades profissionais, compras ou mesmo para atender à demanda de socialização.

Nas redes sociais, não só novas opções de compra e formatos foram se somando ao longo desses três meses de isolamento social. E foi o marketing digital, em especial o marketing de influência, a ser desafiado a repensar suas estratégias de conteúdo — afinal, influenciadores de turismo, por exemplo, agora seriam impedidos de fazer conteúdo fora de casa, seja pelo isolamento social em si ou pela própria pressão crítica exercida pela audiência.

Ao longo da quarentena, muitos refletiram sobre o “cancelamento” de certos influenciadores e celebridades que ou furaram a quarentena ou então começaram a publicar conteúdos polêmicos. Gabriela Pugliesi foi apenas um dos casos. Junto à fila de stories surgiu a fila de lives, o YouTube passou a indexar transmissões ao vivo e o Zoom se tornou a principal ferramenta escolar e profissional, além de multiplicar lives ao se juntar à plataforma Sympla, que então sugeriu uma forma de monetizar esses conteúdos majoritariamente gratuitos. Para tentar pensar formas de monetização pelo conteúdo, o Instagram já começou a testar essa possibilidade há poucas semanas.

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É claro, quem já tinha uma carreira como influenciador continuou seguindo sua lógica de monetização com parcerias publicitárias, assim como os sertanejos bateram recordes de audiência e doações ao longo de seus shows ao vivo e transmitidos pelas redes sociais — mesmo quando alguns artistas passaram do limite no consumo de álcool (às vezes oferecido por uma marca patrocinadora) ou então quando disseram algo controverso. Diferentemente de um show com capacidade física, com um valor que pode delimitar a audiência, shows online são abertos para o mundo inteiro e podem ser facilmente gravados para a eternidade.

Porém, não foram só artistas e influenciadores que adotaram uma rotina de lives. Pessoas que não necessariamente possuíam esse foco profissional passaram a se arriscar mais em lives muitas vezes não planejadas, sem uma mensagem a ser passada, senão uma tentativa de gerar vendas. Isso não pegou muito bem. Como demonstra a pesquisa “Deus me Lives: intoxicação na quarentena”, realizada pela coluna Futuro do Trabalho do Podcast Caos Corporativo, 12% dos respondentes reclamaram da “falta de preparo dos speakers”, 17,3% criticaram a “falta de interatividade e da condição técnica inadequada” e 40,4% ainda se confessaram incomodados com o “conteúdo puramente comercial” das lives.

A mesma pesquisa também apontou que 80,3% dos entrevistados afirmaram se sentir “muito ansiosos” ou “ansiosos” durante a quarentena;  76% assumiram que “se sentem na obrigação de aproveitar o tempo ao máximo” — um número bastante contrastante quando se descobre que apenas 15,4% disseram estar aproveitando o isolamento para desacelerar.

Com a avalanche de cursos, conteúdos e serviços disponibilizados gratuitamente “por tempo limitado” (ou durante a quarentena que, por outro lado, ainda não tem tempo delimitado), o próprio movimento das marcas e dos influenciadores potencializou a ansiedade já decorrente das crises sanitária, econômica e política, para que assim corrêssemos e aproveitássemos essa chance única. Tal qual na Black Friday, em que os descontos são drásticos e as pessoas se atropelam para aproveitar as ofertas, estamos nos atropelando não em pessoas, mas contra o tempo e em nossa saúde física e mental.

Um novo estudo feito pela Flixed apontou que a quantidade de conteúdo consumido sobre a Covid-19 nas redes sociais aumentou em pelo menos 15 minutos por dia do que já era o hábito comum entre os norte-americanos. O reflexo disso, porém, é que quanto mais se usa as redes sociais, piores são os efeitos na saúde mental. Dentre os usuários do Reddit, a pesquisa notou que 57,6% dos respondentes afirmaram que tiveram uma piora em sua saúde mental. Pessoas que limitaram o consumo desse tipo de informação demonstraram estar com a saúde mental melhor, mas o próprio fato de impor um limite já é um desafio quando nos encontramos impedidos de sair de casa. Somos inevitavelmente atraídos pelas telas e, com a oferta de lives, conteúdos gratuitos e cursos disponibilizados, isso só torna a tentação (e a ansiedade) ainda maior. É algo particularmente preocupante quando lembramos que o Brasil foi considerado, em 2019, o país mais ansioso do mundo.

Ainda de acordo com a pesquisa “Deus me Lives”, 42,3% dos entrevistados afirmaram que os conteúdos das lives “são irrelevantes, repetitivos e sem profundidade”, e 38% concluíram que “não aguentam mais as lives” e acreditam que “as empresas só querem aproveitar o momento para se promover”.

Mas então, por quê? Um artigo publicado pela YOUPIX no fim de maio afirma que a “live é um dos formatos que está possibilitando que as pessoas exerçam a necessidade básica de se expressar, de se comunicar e de se sentir pertencentes a uma comunidade. À medida que estamos isolados e impedidos de ter uma vida mais livre, estamos suprindo nossas necessidades de contato por meio desse formato. É a possibilidade de um ponto de encontro, onde se vê, celebra, e ouve os artistas e influenciadores de uma forma aproximada que em outros momentos não veríamos, como shows, por exemplo, que estão sendo de graça no momento da live”. Contudo, fisiologicamente, não é assim que estamos reagindo e daí o surgimento do conceito da fadiga do Zoom.

Segundo a reportagem publicada aqui no TAB, escrita pela jornalista Luiza Pollo, sentir-se exausto depois de uma conversa por vídeo é normal e se intensifica conforme há mais participantes. Nosso cérebro, como afirma o psicólogo Ronald Fischer, entrevistado por Pollo, está programado para se atentar principalmente a pessoas e animais, então, mesmo que não percebamos, seguimos estimulados a prestar atenção nas expressões faciais e movimentos de todos os presentes na tela; olhar para todas essas pessoas pela tela dá a impressão de que estão todos te encarando de volta. Assim, de forma reduzida, o que podemos concluir é que a fadiga do Zoom nada mais é do que um excesso de informação simultânea demandando a atenção do nosso cérebro. Não faria sentido pensar que isso também se aplica às lives?

De acordo com o estudo da YOUPIX, não. Ao contrário das videoconferências, as lives, por serem mais “orgânicas” ou mesmo naturais, podem gerar uma dinâmica de relacionamento, proximidade e troca. Mas será que isso é válido para os dois lados? Criadores de conteúdo já possuem estratégias de como engajar, de em quais horários publicar, do tamanho de seus vídeos ou textos, do formato de suas fotos, dos conteúdos que podem ser relevantes. Porém, na live, mesmo que haja um planejamento ou um roteiro anterior, a audiência é quem dirige o andar da carruagem, como também defende a YOUPIX. Qual é o limite de cada um na hora de se adaptar, se desdobrar e não cair em armadilhas que podem acabar resultando em algum comentário polêmico ou negativo? Todo mundo erra, mas celebridades têm uma imagem a zelar e a internet não perdoa.

O streamer Jesse acabou dormindo por três horas, mas quando acordou, descobriu que 200 pessoas estavam o assistindo dormir.

No Twitch, plataforma de streaming de vídeos, há até mesmo algumas diretrizes sobre como lidar com a saúde mental, a pressão exercida pela lógica da profissão e a depressão que pode advir desse esgotamento. Quando nos vemos “obrigados” a usar lives e nos dispor 24/7 na internet ao longo da quarentena como uma maneira de se manter uma presença online ativa, juntamos pelo menos três focos de ansiedade e pressão: o do isolamento social, o da exposição digital e falta de contato físico e a pressão profissional em se manter relevante e/ou complementar a renda.

Agora, se a busca por lives está na suposta naturalidade e espontaneidade do streamer, então o que dizer dos streamers especializados em fazer lives de atividades rotineiras como as refeições ou mesmo de quando estão dormindo? No Twitch, os streamers mais bem sucedidos e que são mais bem pagos só conquistaram esse posto por ficar o maior tempo online possível. No caso de um dos principais streamers de Fornite, Tyler “Ninja” Blevins, depois que ele ficou 48 horas offline, ele chegou a perder 40 mil inscritos em seu canal, o que leva o streamer a fazer uma maratona online, o que é uma prática comum na plataforma, mas não menos perigosa, que se baseia em fazer lives por dias seguidos em um esforço para atender a diferentes audiências, em diferentes fusos horários pelo maior tempo possível. E isso não é uma particularidade entre gamers: usuários do TikTok também já estão usando essa estratégia.

Ao longo dessa quarentena,  sites de pornografia tiveram seu tráfego aumentado e também as cam girls estão tendo um aumento de acessos e de receita, o que não significa uma melhoria na saúde mental. Na verdade, em reportagem para a Vice, algumas cam girls disseram ter começado a transmitir mais de 17 horas do seu dia depois do início da quarentena e que a audiência tem pedido também para apenas conversar e não apenas performar atividades eróticas. Por que estou trazendo esses dados? Ainda que as lives nas redes sociais ou mesmo no Twitch não possuam conteúdo erótico, esse desejo por mais lives, por mais intimidade com influenciadores e celebridades, parece algo próximo do voyeurismo, com a exceção de que não há uma intenção sexual ali.

O que seria essa inclinação, então? Alguns sinônimos próximos seriam “exibicionismo”, “vigilância”, “vicário”, “invasivo” ou mesmo algo como “stalkear”. Assim, parece fazer sentido que impedidos de consumir outros formatos televisivos, como por exemplo as novelas, a audiência se voltou ao Big Brother convenientemente durante o isolamento social de modo a substituir a experiência concreta de festas, reuniões e entretenimento pelo que outras pessoas estavam vivendo enquanto também confinadas. Para o ex-BBB Pedro Falcão, o programa é o “Coliseu moderno”, de modo que, na Antiguidade, o que valia era a relação vida e morte dos participantes, mas hoje o valor está no ego. “Ele é construído e destruído no mesmo programa. Desde que saí da casa, vi que muitos ex-participantes sofrem ou sofreram de depressão profunda.”

Se estamos pedindo por mais intimidade, mais conteúdo, mais presença digital, como fica a saúde mental dos criadores de conteúdo? E aqui eu não falo apenas de influenciadores e celebridades que, por sua vez, possuem uma equipe dedicada a trabalhar nessa sua presença midiática. Estou falando de pessoas que não necessariamente desejam ser celebridades ou influenciadoras, mas que têm como trabalho a produção de conteúdo e a pesquisa, a educação. Quando vemos quadrinhos como o de cima, vemos que a sede por conteúdo e por prestação de serviço intelectual e informativo não leva em conta o trabalho, o histórico e a dedicação que se demanda para esse tipo de atividade e aí, por outro lado, temos uma desvalorização não apenas do profissional, mas também da pessoa por trás de sua atividade financeira. Estamos, novamente, cometendo o erro de querer trocar trabalho por divulgação.

Assim como animais de circo entravam em exaustão pelos treinos e pela demanda em entreter o público, o mesmo vale para os seres humanos — ou então o fenômeno “Britney careca” não teria acontecido. Sem previsão de encerramento da pandemia e do isolamento social, sem perspectiva de melhoras na política e na economia brasileira, não estamos particularmente em posição de demandar exposição e presença contínua das pessoas. Em Freud, encontramos o conceito de “transferência” como a busca por líderes e por pessoas de referência para nos guiarem e nos organizarem a partir de seus comportamentos em ideia. Quando nosso próprio ego está fragilizado e perdido, é comum tentarmos achar um “totem” para nos firmar, porém tudo isso faz parte de uma ilusão mantida pelo líder por seu narcisismo e por seus seguidores devido à sua dependência infantilizada. Mas esse é um outro assunto que pretendo trazer em uma próxima coluna.

O que quero deixar aqui é menos uma solução e mais uma provocação: o excesso de lives tem mais a ver com o quê? Oportunismo marqueteiro, demandas narcisistas ou uma crise generalizada na saúde mental? Se sua resposta for a última, então talvez seja melhor procurar por um psicólogo ou psiquiatra e não uma live sobre cristais curativos.

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Os impactos da Covid-19 no futuro do design e da arquitetura http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/05/22/os-impactos-da-covid-19-no-futuro-do-design-e-da-arquitetura/ http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/05/22/os-impactos-da-covid-19-no-futuro-do-design-e-da-arquitetura/#respond Fri, 22 May 2020 12:03:49 +0000 http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/?p=433

Na coluna passada, comentei sobre um livro de ficção científica cujo enredo se desdobrava após uma pandemia. Em “Holy Fire”, Bruce Sterling aborda como as casas mudaram sua arquitetura para acoplar uma espécie de antessala higienizadora. No momento em que li, pensei muito nas naves dos filmes tipo “Alien”, nos quais há uma pré-sala de descontaminação, só que o ambiente inóspito e contaminado seria simplesmente aquele fora de casa. Meio que faz sentido nessa quarentena que estamos (sobre)vivendo.

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Na realidade, historicamente é possível apontar algumas mudanças no design das casas depois de algumas epidemias como a gripe espanhola em 1918, tuberculose e disenteria. Segundo a professora de história da arquitetura Juliana Suzuki, os últimos duzentos anos de mobiliário estão muito relacionados às questões de saúde. No final do século 19, a Europa começou a passar por medidas sanitaristas, uma vez que os cientistas tinham acabado de fazer algumas descobertas sobre a transmissão das doenças da época.

Suzuki comenta, por exemplo, que “as pessoas acreditavam que o grande vetor de doença era o próprio ar. Por isso, quem estava doente era mandado para longe da cidade, para receber ‘bons ares’. É com a epidemia de cólera na Inglaterra, que dizimou as populações urbanas, que o debate acerca da origem das doenças começa a ganhar mais força”. Como naquela época não era comum lavar as mãos e limpar a casa, foi só com os avanços da ciência, em especial a descoberta das bactérias e germes, que uma maior compreensão sobre higiene passou a ser difundida. De acordo com Suzuki, essas medidas partiram primeiro do governo, o que pode parecer estranho hoje — ainda mais levando em conta o obscurantismo do governo atual.

Do urbanismo para o espaço doméstico, essas medidas foram adaptadas na arquitetura e na decoração. Alcovas, isto é, quartos sem nenhuma janela, eram algo muito comum na Europa até o século 19. No entanto, com as descobertas científicas, percebeu-se que a falta de ventilação nas casas colaborava com a propagação das doenças. Fora isso, também se passou a concentrar o armazenamento de roupas em armários como forma de facilitar a limpeza do quarto. Antes disso, as pessoas costumavam guardar as roupas em móveis independentes e é por isso que, em alguns apartamentos, antigos há pouco espaço para armários. Nos anos 1920, consolidou-se o uso de armários como uma forma de manter a higiene.

Na cozinha, os azulejos foram incorporados a partir do século 19 porque eram associados à ideia de limpeza e de ambientes livres de germes. Paredes claras e fáceis de limpar poderiam garantir maior higienização do espaço residencial. O mesmo vale para o lavabo, que surgiu como ideia para não ser preciso compartilhar o banheiro da família com visitas. Naquela época, ter uma pia perto da sala e da entrada servia como estímulo à higiene das mãos, por exemplo. Então, quando vemos a estética limpa do modernismo, é possível dizer que isso ocorreu, em parte, por causa da influência da epidemia de tuberculose: os hospitais bem iluminados serviram de referência para a estética dos cômodos brancos e amplos, tipo a casa dos Kardashian-West.

É possível que esse tipo de medida possa voltar depois da pandemia. Senão, alguns hábitos importados de outros povos, como os japoneses, que têm o costume de deixar casacos e sapatos usados fora de casa em um canto na entrada, podem já ajudar. Por outro lado, alguns designers e arquitetos têm pensado também em soluções que envolvem roupas, acessórios, mobiliário e decoração que facilitem o distanciamento social e a proteção contra infecções.

Plex’Eat de Christophe Gernigon

Segundo a plataforma de marketing Criteo, as vendas em melhorias para a casa, jardinagem e decoração aumentaram 13% nos Estados Unidos no começo de março e permaneceram com uma alta de até 8% no meio do mês, se comparado a janeiro de 2019. No caso do site Wayfair, que vende móveis, houve um aumento de 37% nas vendas em abril quando foram anunciadas liquidações. Contudo, no que diz respeito ao mercado de luxo, as perspectivas da Bain and Company, por exemplo, são que esse setor acabe contraindo em 25-30% até o fim de 2020, uma vez que as pessoas estão evitando fazer grandes investimentos.

No entanto, marcas de móveis e utensílios para a casa estão tentando decupar esse momento e a maneira como elas podem lidar com a ansiedade com a qual os consumidores estão passando no momento. Muitos eventos que eram físicos passaram para o digital e o mesmo também aconteceu no setor. A Helsinki Fashion Week, por exemplo, vai ser completamente digital, com designers trabalhando junto a artistas 3D para fazer suas coleções — algo que algumas marcas já estão testando junto a influenciadores. Por outro lado, também se vê das ideias mais esdrúxulas, como colocar um chapéu com aqueles macarrões usados em piscina, para demarcar o afastamento, até soluções artísticas que, apesar de mirarem no futuro, acabam trazendo muito da estética futurista dos anos 1950 e 1960.

Para quem assistiu à série “Electric Dreams” da Amazon Prime, o episódio “Human Is” mostra muito desse futurismo imaginado por Philip K. Dick, e um exemplo é o conceito criado por Christophe Gernigon. Nomeado “plex’eat”, o projeto apresenta cúpulas de acrílico que descem do teto como luminárias e circundam a parte superior do corpo das pessoas enquanto elas fazem sua refeição. O futurismo dos anos 1950 também aparece no projeto de máscaras criadas pelo coletivo artístico alemão Plastique Fantastique. O acessório apelidado de iSphere é um projeto de código aberto que levou apenas 30 minutos para ser montado, sendo que os custos em material foram de algo como 24 euros. Como sugestão dos artistas, o iSphere ainda pode conter customizações incluindo óculos escuros, uma camada espelhada, microfone integrado, uma caixa de som ou mesmo um snorkel.

Já uma versão mais contemporânea do que é considerado futurista aparece no conceito de máscara-visor proposto por Joe Doucet. Levando em conta que visores têm demonstrado maior segurança do que máscaras cirúrgicas, por que não torná-los um acessório fashion? Nessa mesma perspectiva, o estúdio Production Club criou uma espécie de vestimenta de proteção individual para aqueles que desejam voltar à vida noturna o quanto antes.

Segundo os designers, o conceito nomeado Micrashell aponta para o futuro da interação humana, apesar de ser feito para isolar o indivíduo do ambiente externo. No entanto, a roupa ainda conta com um compartimento para bebidas, um sistema de armazenamento para vaporizador, caixas de som acopladas e integração com smartphone. Os criadores ainda asseguram que os usuários poderiam ter relacionamentos sexuais usando a roupa, algo que imediatamente me remete ao curta “Urbance“.

Conceito de roupa protetora criada pelo estúdio Production Club

E falando em estabelecimentos públicos, um relatório de tendências publicado pela Roar sugere que, no futuro, os restaurantes podem adotar uma estética mais escapista, já que haverá menos pessoas saindo para comer fora de casa, então a experiência precisa ser mesmo “de outro mundo”. Essa já era uma tendência acontecendo antes da epidemia, mas agora é esperado que se intensifique. Fora isso, para os especialistas, menus físicos, pagamentos em dinheiro ou mesmo modelos de negócio baseados em buffet e compartilhamento de comida vão cair por terra.

Do ponto de vista de decoração, o modernismo retornará com força pelos mesmos motivos que influenciaram seu desenvolvimento no século passado: higiene e minimalismo. Segundo o relatório, ao “abraçar linhas simples, geometrias estritas e materiais modernos, bem como a rejeição de ornamentos como móveis feitos de madeira e que coletam micróbios perigosos”, os restaurantes pós-Covid19 também precisarão de cozinhas mais espaçosas e transparentes, bem como utensílios e superfícies antimicrobianas — o que já entra na seara da ciência de materiais.

É claro que pode ser que nada disso aconteça, mas, assim como visto no passado, pelo menos algumas ideias devam ser dissolvidas no dia a dia e passem a ser o tal do “novo normal” de que tanto ouvimos falar por aí. Assim como as epidemias anteriores nos tornaram mais conscientes sobre higiene, é possível que também passemos por mudanças em nossos hábitos de consumo — o que, por sua vez, leva a mudanças industriais e comerciais. É um ciclo retroativo e, diante da crise de saúde pública, mas também econômica, marcas e estabelecimentos comerciais serão forçados a se adaptar para sobreviver.

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Em ‘Holy Fire’, Bruce Sterling imagina uma gerontocracia pós-pandemia http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/05/09/em-holy-fire-bruce-sterling-imagina-uma-gerontocracia-pos-pandemia/ http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/05/09/em-holy-fire-bruce-sterling-imagina-uma-gerontocracia-pos-pandemia/#respond Sat, 09 May 2020 07:00:15 +0000 http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/?p=422

Em 1998, o escritor de ficção científica Bruce Sterling publicou na revista INTERZONE “Cyberpunk in the Nineties“, ou cyberpunk nos anos 1990, fazendo um balanço sobre o gênero e seus autores. Para Sterling, a “intensidade visionária”, outrora um valor central no cyberpunk, foi abandonada com o tempo e com o envelhecimento dos autores que, à época da coluna, deviam estar na casa dos 40 anos. Afinal, já fazia “algum tempo que algum cyberpunk escreveu alguma história realmente surpreendente, algo que se contorcesse, se atirasse, uivasse, alucinasse e destruísse os móveis”. 

Isso tudo foi tido oito anos depois de Lewis Shiner, parte do quinteto O Movimento, que deu origem ao cyberpunk, já ter publicado no jornal The New York Times “Confissão de um ex-cyberpunk“, sobre como o gênero já não fazia mais sentido.

De todo modo, em pleno 2020, adaptações e obras originais resgatam o subgênero ou pelo menos alguns de seus elementos, como é o caso das séries “Black Mirror”, “Altered Carbon” ou ainda o aguardado jogo “Cyberpunk 2077”.

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Em 1996, porém, Sterling lançou o romance “Holy Fire”, uma ficção que escancara as opiniões que o autor trabalha em sua coluna. Considerada uma obra cyberpunk, “Holy Fire” traz ponderações e construções literárias mais maduras do que o estilo que o grupo consagrou nos anos 1980.

Em “Holy Fire”, acompanhamos a trajetória de Mia Ziemann, uma economista da saúde de 94 anos vivendo em um mundo pós-pandêmico, no do século 21. Assim como Sterling descreve em seu artigo “The object of posterity’s scorn” na revista ARC, o autor se vale de referências históricas para pensar o futuro, entendendo que certas ocorrências são quase cíclicas. No caso de epidemias, é simplesmente uma questão de “quando” e não de “se”.

Hoje, diante da crise da Covid-19, a ansiedade típica da nossa condição metamoderna nos faz querer saber de antemão o que vai acontecer depois que tudo isso acabar — seja lá quando for.

Palpites não faltam, mas foi interessante encontrar na ficção de Sterling a ideia de que, após vivenciar uma epidemia que matou milhares de pessoas, a sociedade se transformaria em um grande complexo médico-industrial, de modo que a higiene e a esterilização se tornassem a norma e as tecnologias de extensão da vida seriam possíveis, não apenas de se viver por mais tempo, mas também prolongar a juventude. Apesar da idade, Mia não é uma mulher debilitada e, assim como se observa hoje em dia, cada vez mais a ideia de “juventude” se estende devido a novas técnicas, sejam elas medicinais ou cosméticas.

Quando perguntei a Sterling o que ele acredita que viveremos depois que a pandemia acabar, se teríamos um mundo parecido com o de “Holy Fire”, o autor disse que as coisas não irão voltar ao normal. “Grandes eventos como esse mudam muitos aspectos de nossas vidas, mas as pessoas irão rapidamente esquecer sobre desastres como as epidemias.” Para ele, “epidemias fazem as pessoas se sentirem assustadas, humilhadas e desamparadas, e ninguém gosta de insistir no trauma”.

O que vemos no romance é a história de uma mulher que sofre uma “crise de quase centenária” ao perceber que, durante toda sua vida, ela foi cuidadosa demais. Essa constatação se torna patente quando Mia visita um ex-namorado pouco antes de ele optar pela eutanásia, uma vez que sua vida não tão conservadora o fez acumular danos irreversíveis ao corpo, mesmo em um momento de alta tecnologia médica.

Mia, apesar da idade, se torna habilitada para um procedimento experimental de rejuvenescimento completo. Depois de passar meses suspensa em uma espécie de câmara descrita de forma reminiscente à icônica abertura de “Ghost in the Shell”, a protagonista retorna ao mundo como uma garota de 20 anos desassociada de sua identidade real, então renomeada Maya, a partir de uma confusão na pronúncia de seu nome.

De forma semelhante a “Holy Fire”, o filme “Neon Demon” também escancara a incongruência do mundo artístico, em especial na indústria da moda

Como confirmei com Sterling, a escolha por esse novo nome não foi acaso: Maya é um conceito do hinduísmo que diz respeito à ilusão mundana. “Conforme você fica mais velho e mais sábio, você vê para além da fascinação sensual e colorida exercida por ‘Maya’ e, então, você confronta a realidade espiritual da vida. No livro, ‘Maya’ é uma mulher idosa que decide abandonar sua sabedoria porque ela quer resgatar a vitalidade e a vivacidade da juventude. Isso é algo perverso na sociedade dela, mas ela se rebela e faz o procedimento mesmo assim”, explica o escritor.

Para resgatar essa vivacidade (aliás, o adjetivo “vivid” ou vívido é bastante usado no romance como uma forma de expressar um certo frescor na juventude), Mia, então Maya, começa a tomar atitudes impulsivas, como viajar para a Europa sem dinheiro e sem documento. Apesar de a Europa do fim do século 21 prover comida gratuita e um estado de bem-estar social generalizado, a protagonista acaba dependendo da boa vontade dos outros ao usar, principalmente, sua beleza e juventude como chamariz. Fora isso, um dos efeitos colaterais ao procedimento rejuvenescedor foi fazer Maya insensível à sua percepção de fome, o que calha bem com o desejo e destino da protagonista em se tornar modelo.

Assim, Maya se vê inserida em um contexto boêmio de artistas que transitam entre Munique, Stuttgart, Praga e Roma. Diferentemente dos neologismos tecnológicos do cyberpunk dos anos 1980, aqui há uma mistura de palavras estrangeiras e transições frequentes entre o alemão, italiano e francês — tudo suportado por tecnologias de tradução que variam entre plugs auriculares e perucas inteligentes. Aliás, todas as tecnologias, cenários e personagens imaginados por Sterling possuem uma alta carga fashionista e muitos dos exemplos são verdadeiros estereótipos do mundo artístico — “Holy Fire” é, sobretudo, uma história sobre o futuro deste nicho. “Sou um cyberpunk, mas me envolvi no campo das artes depois de escrever esse romance. Hoje, sou diretor de arte do Share Festival em Turim, na Itália, e meus amigos locais conseguem se relacionar muito bem com a história”, Sterling me contou.

Entre artistas junkies (enteógenos são a droga do futuro imaginado por Sterling), programadores-artistas (Sterling chama essa combinação de arte e tecnologia de “artifício”, por exemplo), fotógrafos consagrados e acadêmicos supervalorizados, a cena cultural de “Holy Fire” traz em si o problema patente nessa sociedade do fim do século 21. Diante de novas tecnologias de extensão da vida, o envelhecimento da população se intensifica e aqueles que outrora tiveram a oportunidade de formar seus negócios estão no topo da economia. Isso significa que o mundo de “Holy Fire” é uma gerontocracia em que há pouca mobilidade social para os mais jovens, o que torna a interação geracional um conflito. A longo prazo, isso também pode ser um problema na nossa realidade, como comenta Sterling: “A sociedade de hoje está muito mais velha, demograficamente, do que 24 anos atrás, quando o livro foi publicado. O novo coronavírus preferencialmente mata pessoas mais velhas, mas certamente não irá matar todas elas, e isso pode acabar radicalizando essas pessoas. E elas votam.”

Vemos também que, desde 1996, muitos projetos estão crescendo em torno da busca pelo fim da morte e pela extensão radical da vida. “Presto muita atenção em pesquisadores em gerontologia. Encontrei Aubrey de Grey e jantei com ele uma vez, apesar de ele não ter querido comer o que eu estava comendo. Ele, certamente, é um homem diferente, mas ele é sério, genuíno, dedicado, um evangelista da extensão da vida metódico. E ele tem os meios, o motivo e a oportunidade de mudar a opinião pública em prol de suas ambições”, o escritor revelou.

Natasha Vita-More, ex-halterofilista, é uma transumanista que defende o fim do envelhecimento e da morte. A pesquisadora reflete, em seu trabalho, alguns dos conflitos de “Holy Fire”.

Na nossa realidade, para além de nomes como De Grey (que tem 57 anos) ou mesmo Peter Diamandis, Max More e Ray Kurzweil (58, 56 e 72, respectivamente), há também pessoas mais jovens, como Elon Musk (48) e Mark Zuckerberg (35) que estão investindo em projetos de extensão da vida. Aliás, esses nomes são provas de que a nossa sociedade (pelo menos, por enquanto) não se tornou uma gerontocracia tão rígida quando vemos pessoas de 30 anos fazendo fortunas e se tornando bilionárias. No entanto, isso não torna suas ambições diferentes, como ironiza Sterling. “Se você é um magnata da tecnologia e você tem bilhões de dólares, bem como o comando de pesquisa e desenvolvimento, deve ser vergonhoso simplesmente morrer de velhice como meros funcionários ou, ainda pior, como um mero usuário”. Mesmo em “Holy Fire”, os artistas jovens também almejam a imortalidade, porém a partir da transgressão.

No romance, ser jovem está quase que inextricavelmente associado a um comportamento rebelde, mesmo porque a rigidez gerontocrática não permite que pessoas mais novas tomem posições de poder e, portanto, responsabilidade. Alguns diálogos travados entre Maya e Brett, uma garota que sonhava ir para Stuttgart e se tornar uma designer de moda, escancaram o problema geracional da ficção: a personagem não consegue se estabelecer economicamente porque ainda é muito jovem e inexperiente, bem como também não consegue se tornar parte da cena artística boêmia por ser um nicho muito exclusivo. “Holy Fire”, nesse sentido, parece ser uma antecipação do dilema da torrada com abacate dos millennials.

Maya, portanto, começa a assimilar a sua nova existência profana, uma vez que ela tem a aparência de uma garota de 20 anos, mas a mente e a maturidade de uma mulher de quase 100. Apesar de sua aparência física ter facilitado muitas conquistas, muitos outros problemas (mesmo com drogas) poderiam levá-la ao colapso se ela não tivesse maturidade suficiente. Assim como em “O Misterioso Caso de Benjamin Button”, aqui somos confrontados com a possibilidade de reverter a lógica da vida, seja através do fim da morte ou da reconquista da juventude.

Sterling, por fim, traz justamente esse dilema entre viver uma vida saudável para envelhecer bem ou então aproveitar os anos de juventude, uma vez que a velhice trará limitações. Se conquistarmos a tecnologia para isso, talvez possamos, um dia, pôr em prática a resposta que damos à pergunta “o que você faria de diferente quando mais jovem?”.

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A visão futurista de um ‘Comunismo Automatizado de Luxo’ http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/04/28/a-visao-futurista-de-um-comunismo-automatizado-de-luxo/ http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/04/28/a-visao-futurista-de-um-comunismo-automatizado-de-luxo/#respond Tue, 28 Apr 2020 07:00:13 +0000 http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/?p=405

A chamada “economia pós-escassez” é um cenário hipotético da teoria econômica em que há abundância de recursos sendo produzidos por uma quantidade mínima de mão de obra humana, o que possibilita sua comercialização a preços baixos ou, em última instância, a disponibilização gratuita.

Essa situação especulativa teve seus primeiros esboços feitos por Karl Marx, em um trecho de seu livro “Grundrisse” (1858) intitulado “Fragmento das Máquinas”, em que fala sobre a transição para uma sociedade pós-capitalista na qual os avanços na automação possibilitariam esse cenário de redução de trabalho humano, abundância de recursos e maior tempo livre para o lazer e para os estudos.

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Esse discurso talvez não pareça novidade àqueles que vêm acompanhando conteúdos produzidos por futuristas como o americano Peter Diamandis, um dos fundadores da Singularity University. Co-autor do livro “Abundância”, Diamandis afirma que a humanidade está entrando em um período de transformação radical, no qual a tecnologia carrega o potencial de elevar os padrões de vida básicos de todas as pessoas no planeta. Eles cravam que essa cena aconteceria por volta de 2040, quando serviços outrora restritos à minoria rica serão disponibilizados a todos que precisarem e desejarem.

Em tempos de Covid-19, crise econômica e política, fica difícil acreditar em tal desdobramento para nosso futuro interrompido por uma pandemia. Mas, para futuristas como Diamandis, mais do que exercitar o otimismo é preciso ver como, apesar de tudo, o mundo industrializado nunca esteve tão seguro e nunca vivemos por tantos anos. A expectativa de vida das pessoas, em 2000, já era 60% maior do que em 1900 e, além disso, cada vez mais somos surpreendidos por inovações tecnológicas que prometem revolucionar todos os aspectos de nossas vidas: da penicilina às chamadas tecnologias exponenciais, assim intituladas devido à exponencialidade de seu desenvolvimento.

Tecnologias como a realidade virtual, blockchain, inteligência artificial, fontes de energia sustentável, internet das coisas, big data, robótica, bioengenharia ou mesmo a mineração espacial prometem mudar o mundo e nos levar a uma possível Quarta Revolução Industrial ou Terceira Disrupção, como nomeia Aaron Bastani, autor do livro “Fully Automated Luxury Communism”, de 2019.

Apesar de o título lembrar algum meme ou uma página de humor irônico no Facebook, o termo traduzido como “Comunismo Automatizado de Luxo” e encurtado a partir da sigla FALC, em inglês, traz em si a ideia de uma futura economia que supera a lógica da escassez, tanto no sentido da disponibilidade de recursos quanto da criação artificial de escassez na lógica de mercado capitalista. Bastani usa as quase 300 páginas do livro para dar contexto e ponderação à proposta que, de fato, suscita dúvida e ceticismo. Apesar de ser visto como um pensador utópico, Bastani procura manter suas proposições as mais objetivas e racionais possíveis. Para isso, boa parte da obra se dedica a elencar exemplos de tecnologias e empresas que estão trabalhando em ferramentas e produtos que possibilitem a automação e a conquista de um futuro pós-escassez.

Antes de iniciar um longo relatório tecnológico, Bastani primeiro faz a provocação sobre como o senso comum tende a pensar que o capitalismo é inevitável e insubstituível. Você provavelmente já ouviu alguém dizer algo parecido com esse tuíte de Olavo de Carvalho, mas o que o autor britânico procura defender é que esse é só mais um sintoma do que Mark Fisher chama de realismo capitalista, resumido na sugestão de que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Em outras palavras, a percepção geral é de que o capitalismo não apenas é o único sistema econômico viável, como também é “impossível de se imaginar uma alternativa coerente”, afinal, como escreve Bastani, “como contribuir com uma alternativa à própria realidade?”. Já nas palavras do filósofo francês Alain Badiou, citado por Bastani,

“Nós vivemos em uma contradição … na qual toda existência … nos é apresentada como ideal. Para justificar o conservadorismo, os partidários da ordem estabelecida não podem realmente chamar (o modelo) de ideal ou maravilhoso. Então, em vez disso, eles decidiram dizer que todo o resto é horrível … nossa democracia não é perfeita. Mas é melhor que as malditas ditaduras. O capitalismo é injusto. Mas não é criminoso como o stalinismo. Nós deixamos milhares de africanos morrerem de Aids, mas nós não fazemos declarações nacionalistas e racistas como Milosevic”.

Se, depois de ler essa citação, você pensou em campanha publicitária exibida por representantes de comunidades marginalizadas e como essas mesmas pessoas não são empregadas pela mesma marca, você entendeu a ideia. No mundo do realismo capitalista, nada nunca muda; porém, como diagnostica Bastani, sofremos uma grande crise em 2008 e hoje vislumbramos novamente um sinal de alerta: no Reino Unido, o suicídio é principal causa de morte de homens com menos de 50 anos e a depressão pode tomar liderança nos gastos em saúde por volta de 2030. Fora isso, há ainda a crise migratória na Europa, o Brexit, a ascensão da extrema direita e de líderes opressivos, as mudanças climáticas e seus negacionistas e, finalmente, a pandemia que já soma mais de 190 mil mortes e a perspectiva de uma nova crise econômica — que, aliás, vai sair muito mais caro para alguns.

Bastani cita Francis Fukuyama em seu livro porque o escritor, no início dos anos 1990, declarou que o fim da União Soviética também instaurava o fim da história. Contudo, Bastani reforça não apenas o absurdo dessa constatação como também afirma que a ideia apenas provou a instauração do chamado realismo capitalista. Com o insucesso do socialismo na União Soviética, ficou mais óbvio que apenas o capitalismo pode funcionar. Mas o que o FALC quer argumentar é justamente o contrário: é possível de se pensar alternativas e essa é uma delas.

O que estamos prestes a assistir é o fim do capitalismo por suas próprias mãos. Aliás, esta é a perspectiva que Slavoj Zizek vislumbra frente à crise do novo coronavírus (apesar de Byung-Chul Han defender justamente o oposto). Mesmo que não enfrentássemos essa pandemia, Bastani já diagnosticava que o próprio imperativo do capitalismo é a competição em se achar sempre a forma mais barata e eficiente de se produzir commodities (mesmo que isso signifique substituir humanos por máquinas). Em outras palavras, o próprio modus operandi do capitalismo pode ser responsável por criar aquilo que vai torná-lo obsoleto.

A começar pela crise energética e sua respectiva escassez de recursos naturais, seus fatores políticos e econômicos, bem como seus efeitos colaterais no meio ambiente. Bastani, então, comenta como a eletrificação e o uso da energia solar já estão sendo consideradas mais relevantes e cada vez mais disseminadas ao redor do mundo. No Reino Unido, por exemplo, há a perspectiva de usar apenas fontes de energia renovável até 2040. Na China, durante os últimos cinco anos, grandes cidades têm feito o processo de eletrificação em seus transportes públicos como uma forma de reduzir o problema da poluição do ar, mas também sonora.

Já no caso de outros recursos naturais, matérias-primas como ferro não precisarão mais ser extraídas do nosso planeta. Levando em consideração a perspectiva de crescimento da população para até 9,8 bilhões de pessoas até 2050, fica impossível de se manter a mesma lógica de consumo atual e acreditar que a Terra poderá dar conta da demanda. Na realidade, um estudo de 2015 já demonstrou que se todos no planeta tivessem os mesmos hábitos de consumo dos norte-americanos, seriam necessários quatro planetas Terra para sustentar o mercado em termos de recursos naturais. Só que o que Bastani argumenta não tem a ver apenas com uma mudança no consumo ou mesmo uma intensificação dos processos de reciclagem e criação de produtos biodegradáveis, por exemplo. O pesquisador britânico entende que a mineração espacial é o caminho para a aquisição de recursos minerais virtualmente infinitos e que, portanto, atingirão um custo muito baixo devido à sua abundância.

E parece que muitos empresários estão de olho nesse setor industrial: Jeff Bezos, fundador da Amazon, por exemplo, já se mostrou interessado no mercado. O futurista Peter Diamandis é um dos fundadores da Planetary Resources, empresa de mineração de asteroides. No caso da PR, o interesse está especialmente focado nos NEAs, ou asteroides mais próximos da Terra. Além da vantagem de proximidade ao planeta, também há o fato de que suas riquezas minerais são tão grandes que chegam a ultrapassar nossa compreensão. Bastani afirma em seu livro que uma das estimativas sobre o cinturão de asteroides é algo como 825 quintilhões de toneladas de ferro, com 63kg de níquel para cada tonelada de ferro, o que possibilitaria a geração de uma riqueza capaz de prover US$ 100 bilhões para cada pessoa no mundo inteiro. Para investigar isso, os japoneses colocaram em órbia a sonda Hayabusa2 em junho de 2018. Ela deve voltar à Terra em algum momento no fim de 2020.

Por enquanto, os gastos necessários para a exploração, desenvolvimento e implementação de um sistema robusto de mineração espacial ainda são muito altos (tanto que Bastani menciona como mesmo as iniciativas privadas na área aeroespacial ainda assim contam com recursos governamentais). Contudo, assim como acontece com qualquer tecnologia (pense no computador e em como ele foi barateado e miniaturizado no celular, então seguindo a chamada Lei de Moore), haverá um momento em que a mineração espacial será mais barata ao ponto de as commodities por si só passarem a ter preços tão irrisórios devido à própria abundância. E isso vale para todas as outras tecnologias exponenciais: a inteligência artificial, a robótica, a bioengenharia, tudo ficaria mais barato e acessível, bem como mais eficiente. Vale lembrar, também, que tudo isso aconteceria em um cenário em que as pessoas envelhecem cada vez mais, a taxa de natalidade diminui e alcançamos um pico de crescimento populacional que Bastani prevê por volta do fim deste século.

Claro, parece estranho pensar que chegaremos a um ponto em que a população irá parar de crescer quando se conquistam novas tecnologias que facilitam a vida e quando se tem acesso a recursos virtualmente infinitos. Já foi observado durante as revoluções industriais como as taxas de natalidade aumentaram, as de mortalidade diminuíram e a longevidade se estende cada vez mais. Com exceção de um evento catastrófico, como uma guerra ou uma epidemia, fica difícil imaginar que desaceleraremos o crescimento populacional. Contudo, para este e outros problemas de solução ainda difícil de ser vislumbrada, Bastani traz como exemplo a grande crise do estrume de cavalo na Londres de 1894.

Naquela época, o crescimento da cidade levou à multiplicação de cavalos nas ruas e a concentração de dejetos que não conseguiam ser removidos, a ponto que publicações como o The Times acreditavam que “em 50 anos, cada rua de Londres estaria coberta por três metros de esterco”. Essa passagem histórica que transformou os dejetos equinos de recursos a serem vendidos em um problema de limpeza acabou se tornando uma analogia para momentos que parecem insuperáveis, até que uma nova tecnologia (como foi o caso dos carros, nesse contexto) muda completamente o cenário. É aí onde entram as tecnologias exponenciais.

Mas mesmo que Bastani gaste páginas e páginas elencando como a eletrificação eliminará os combustíveis fósseis da equação, como a mineração espacial trará recursos infinitos e como a biotecnologia pode curar doenças e criar carne em laboratório capazes de tornar a pecuária uma indústria obsoleta, fica difícil acreditar que chegaremos a um ponto em que, de fato, todos terão acesso a isso – afinal, não é isso que o comunismo propõe? O autor sabe e, por isso, traz como exemplo o filme de ficção científica “Elysium”, no qual, apesar de existirem tecnologias de ponta, elas só são acessíveis a uma classe mais privilegiada. Isto porque, como o britânico explica, essa sociedade futurista ainda vive sob um regime capitalista, o qual mesmo diante da abundância cria escassez artificial para manter a concorrência e a lucratividade.

É por isso que por mais que as tecnologias continuem evoluindo, elas nunca serão acessadas por todos se não houver uma mudança política acima da inovação tecnológica. Nas palavras de Bastani,

“… na ausência de uma política apropriada, isso só será uma nova forma de gerar lucro. Marx expressou isso perfeitamente quando escreveu que ‘a mais avançada máquina então força o trabalhador a trabalhar por mais horas do que um selvagem, ou do que ele próprio trabalhava quando usava as ferramentas mais simples e rudimentares.’ Em resposta a essa admissão, uma afirmação: qualquer política de sucesso que procure direcionar as possibilidades da Terceira Disrupção às necessidades das pessoas em vez da lucratividade deve ser populista. Senão, é certo que irá falhar. O realismo capitalista é simplesmente muito adaptável para as políticas radicais de administração e tecnocracia, o que significa que qualquer ruptura precisa ser compreensível à maioria das pessoas, em uma linguagem capaz de ser rapidamente entendida.”

Ou seja, o que Bastani argumenta é que não adianta manter essas ideias em um nível acadêmico e elitista. Quando o autor fala de populismo, ele sugere uma abordagem de retórica política que seja simples e atraente para que não afaste ou confunda as pessoas. Acontece que, no nosso caso latinoamericano, fica difícil ler essa palavra e não trazer em mente as memórias de políticos populistas que não se apropriaram de uma comunicação acessível para beneficiar as pessoas, senão para se fazer eleito e então tomar decisões ao seu próprio benefício.

Fora isso, quando Bastani sugere a implementação do comunismo, ele não traz em si a perspectiva do que foi o comunismo no século 20, mesmo porque o que o mundo vivenciou até então foi um socialismo ainda definido pela escassez e pela existência de empregos. Na Terceira Disrupção, não só haverá abundância de recursos e riquezas como o trabalho também deixará de existir como necessidade à sobrevivência para se tornar um lazer — afinal, “produtividade é para robôs”, como já disse o futurista Kevin Kelly. E é nesse ponto em que entra o luxo proposto pelo pesquisador.

No futuro, robôs trabalharão por nós para que possamos ter lazer e trabalhar com aquilo que nos dê prazer, não para sobreviver. / Ilustração de Andrew Rae.

Ao se aproximar dos partidos verdes com suas preocupações em relação ao meio ambiente e ao bem estar animal, o FALC também se aproxima dos partidos de esquerda até divergir de suas narrativas que glorificam a simplicidade ou até mesmo uma perspectiva idílica de fuga da cidade e da modernidade. O FALC não só é contra esse chamado de volta à natureza como também os hábitos de consumo sob o capitalismo pautado por combustíveis fósseis, com sua lógica de comutação, publicidade onipresente, trabalhos sem sentido e obsolescência programada. Para viver uma boa vida em um cenário de abundância de recursos, é possível que vivamos uma vida parecida com a dos bilionários de hoje, caso quisermos. “O luxo estará em tudo conforme a sociedade baseada em trabalho assalariado se tornar uma relíquia histórica do mesmo modo que o camponês feudal e o cavaleiro medieval”, escreve Bastani.

Não se trata, portanto, de emular os costumes niilistas dos bilionários da contemporaneidade, mesmo porque suas práticas se baseiam, justamente, na lógica da escassez. Enviar um carro da Tesla ao espaço não faz sentido nenhum senão demonstrar que Elon Musk pode fazê-lo porque tem dinheiro. Do mesmo modo também não significa que o FALC defende discursos de “consumo ético” ou mesmo a narrativa de que “o local” é mais virtuoso. Em um cenário no qual tudo é acessível, barato e possível, narrativas que ainda mantêm contrastes não fazem sentido. E isso só pode ser conquistado não através de uma renda básica universal, como muitas vezes ouvimos dizer, mas sim através de um sistema básico de serviços públicos.

No Brasil, já desfrutamos de um sistema de saúde público, bem como instituições de ensino públicas. O que Bastani propõe é estender isso a todos os países do mundo, tornando educação, moradia, transporte, saúde e informação direitos garantidos e gratuitos a todos. Diferente de distribuir uma renda mínima para as pessoas, a qual poderia gerar inflação aos governos e manter a lógica desses serviços como se fossem commodities capazes de terem seus preços manipulados pelo mercado, possibilitar o acesso generalizado e gratuito garante uma maior conquista de bem estar social e de independência dos cidadãos — afinal, como escreve Bastani, “pessoas necessitadas não são pessoas livres e um sistema de serviços básicos universais acaba com essa necessidade.”

Agora, se seu problema está no fato de Bastani se inspirar em Marx ou mesmo propor o comunismo como o sistema político-econômico a ser seguido com a chegada da Terceira Disrupção, saiba que também os economistas Keynes e Drucker pensaram algo semelhante, uma sociedade na qual a inovação tecnológica pode nos levar à abundância e na qual a informação se tornaria a nova moeda. Contudo, o capitalismo não tem como funcionar nesse cenário de automação e abundância de recursos. Bastani comenta que os níveis de automação diminuíram nos últimos anos, o que poderia significar um maior pessimismo para a chegada da Terceira Disrupção, mas o motivo não está na tecnologia, mas sim o fato de os salários estarem cada vez tão baixos que substituir trabalhadores por máquinas não é lucrativo. Fora isso, o autor ainda conta uma anedota na qual Ford teria dito que não poderia automatizar completamente sua linha de montagem ou então baixar demais os salários de seus funcionários porque, no fim das contas, eles próprios seriam os compradores dos seus produtos.

Afinal, muitas das tecnologias que prometem vir com a Terceira Disrupção, na verdade, não são novas: elas só moveram das “bordas” da sociedade para tomarem seu centro (como explora a futurista Amy Webb em seu livro “Amazon The Signals Are Talking”). Se elas já estavam entre nós e não se desenvolveram tão rapidamente quanto poderiam é porque o motivo pelo qual vivemos no mundo de hoje não é tecnológico, mas político. O mesmo vale para esse novo mundo ao qual podemos nos dirigir. Para Bastani, de fato, não há nenhum motivo real pelo qual as empresas e os mais ricos desejem liberar as pessoas ou manter os ecossistemas do nosso planeta — na verdade, faz mais sentido continuar intensificando a desigualdade econômica e o colapso generalizado para que algum novo algoritmo preditivo ou uma startup unicórnio venham com a solução. Pelo contrário, a mudança não virá através desses, mas sim da política a ser feita coletivamente.

Apesar de promover algo tão rompante, Bastani provoca, afirmando que “Fully Automated Luxury Communism” não é um livro sobre o futuro, mas sim sobre um presente que não está visível (ou não quer ser visto) pelas pessoas. É uma isca que nos possibilita fugir da caverna de Platão do realismo capitalista e, no mínimo, questionar se, de fato, faz sentido acreditar que é mais fácil o mundo acabar do que o capitalismo deixar de existir. Mesmo que não adotemos o FALC, mesmo que sequer adotemos o comunismo, há de haver algo além dos espectros do capitalismo que habitam nossa caverna.

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Como um meme brasileiro virou um manifesto metamoderno da Protomartyr http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/04/10/como-um-meme-brasileiro-virou-um-manifesto-metamoderno-da-protomartyr/ http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/2020/04/10/como-um-meme-brasileiro-virou-um-manifesto-metamoderno-da-protomartyr/#respond Fri, 10 Apr 2020 07:00:44 +0000 http://lidiazuin.blogosfera.uol.com.br/?p=392

No início de março, a banda norte-americana Protomartyr chamou a atenção dos brasileiros com o lançamento de um peculiar videoclipe para o single “Processed by the Boys”. Conhecidos na cena indie como uma das mais promissoras bandas de pós-punk da contemporaneidade, o grupo conquistou a audiência brasileira ao trazer uma paródia de um famoso meme local: a briga travada entre Gil da Esfirra e Galerito no programa amazonense Canal Livre. Em outras palavras, o que descobrimos é que a inusitada cena de um homem desferindo socos e chutes contra um fantoche enquanto um cantor continua pleno em seu playback eternizou não apenas na memória afetiva dos brasileiros, mas também chegou aos Estados Unidos como um icônico exemplo de falhas na televisão.

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Em entrevista, o vocalista da Protomartyr, Joe Casey, me contou que o meme não chegou a ficar popular por lá, mas a banda acabou tomando conhecimento do vídeo através de um compilado. “A cena estava provavelmente inserida entre um repórter vomitando e um animal correndo em um set de gravação ou algo do tipo. Mas o clipe foi suficientemente chamativo para ficar preso na minha cabeça por um ou dois meses depois de ter visto e então precisei fazer um vídeo a partir desse conceito, uma ideia bizarra que não funcionou.” Foi depois da publicação do clipe que Casey foi notificado por centenas de brasileiros que reconheceram a referência e então mencionaram que se tratava de um programa de televisão nacional que não só teve esse trecho viralizado na internet, mas que também se tornou tema de um documentário produzido pela Netflix, “Bandidos na TV”.

A série documental de sete episódios narra a ascensão de Wallace Souza como apresentador do popular programa Canal Livre, que expunha crimes violentos em horário nobre, até se tornar deputado e então acusado de ordenar crimes, de modo a aumentar a audiência de seu programa. Assim como muitos que tiveram acesso ao meme do Gil da Esfirra versus Galerito, Casey também não tinha ideia do contexto no qual aquele vídeo e programa se inseriam. No clipe de “Processed by the Boys”, somos apresentados a uma paródia da cena real, estilizada inclusive na edição do vídeo para que pareça realmente advindo do começo dos anos 2000, momento em que o incidente ocorreu. Com roupas coloridas e típicas à época, os atores assumem uma postura que oscila entre o natural e o espontaneamente posado (para quem se lembra dessa ilustre comunidade do Orkut), o que faz muito sentido à maneira como se portam os verdadeiros personagens do meme.

Essa estética não nos é necessariamente inédita quando lembramos da maneira como os comediantes Hermes e Renato se apropriavam de tropos da chanchada para fazer humor com som de rock, que foi o que me fez pensar, em um primeiro momento, que se tratava de uma banda brasileira devido à particularidade da referência e da mensagem ali passada. Mas não. É uma banda americana readaptando um conteúdo brasileiro que, por sua vez, usa moldes de programas de TV importados dos Estados Unidos. É este o cenário maluco em que nos encontramos em pleno século 21, à beira do início da década de 2020: um cenário pós-colonialista de expansão globalizante e que já não mais se encaixa na perspectiva pós-modernista, mas sim metamodernista, como já comentei por aqui em outra oportunidade.

No caso, a Protomartyr já tem uma tradição de fazer videoclipes mais elaborados, inclusive utilizando-se do recurso da legenda porque as letras sempre carregam em sua poética autoral uma mensagem crítica e sufocantemente absurdista. Em “Don’t go to Anacita”, vemos uma adaptação do curta “Stairway to Lenin”, de Zbigniew Rybzynski, no qual escadas intermináveis enquadram a jornada não da ascensão e queda da União Soviética, mas sim o círculo vicioso do capitalismo. Em “Wheels of Fortune”, outro clipe da banda também dirigido por Yoonha Park, o capitalismo reaparece mais uma vez para dar o tom caótico de uma colagem de cenas que reúnem naturezas mortas, fotografias de tons renascentistas e iconografias como o vanitas (caveira), que não apenas era usada no Renascimento como uma lembrança da morte (memento mori), mas também uma mensagem de quão fútil é a nossa vaidade. E tudo isso entre versos como “water as commodity all is comedy”(água como produto, tudo é uma comédia), “wrath for sale and it is always Christmas/I decide who lives and who dies” (fúria por vendas e é sempre Natal/eu decido quem vive e quem morre). 

Em “Processed by the Boys”, no entanto, há um tom bem humorado que nos recorre à maneira como o metamodernismo encara os problemas contemporâneos. Casey comentou que ele sabia que os diretores David Allen e Nathan Faustyn seriam capazes de recriar o clipe sem diminuir o conteúdo original e, ao mesmo tempo, também acrescentar elementos que tivessem a ver com a música. “É engraçado que eu esteja falando sobre o vídeo original de um homem tentando bater num fantoche como se fosse algum tipo de obra de arte em um museu, mas, ei, meio que é!”, ele comenta. Afinal, quando temos, em um museu, uma banana avaliada em US$12 mil sendo comida por um artista performático ou quando temos um visitante caindo em buracos abertos no chão da galeria, o limiar entre a mensagem crítica da arte contemporânea e o absurdo da realidade se torna ainda mais tênue.

Diferente do vídeo original, a Protomartyr endereça também a violência policial representada por seguranças que não existem no trecho do programa Canal Livre. Quando tudo descamba em agressão, não apenas o público antes contido se sente no direito de participar da revolta quanto os seguranças se vêem no direito de usar a força para controlar a situação. Tudo isso enquanto o cantor continua sua música com mais ou menos desenvoltura e novos artistas fazendo malabarismos aparecem como uma distração ao caos que se instaura no estúdio. A metáfora é clara demais para precisar ser explicada. Agora, o que a banda não contava é que o lançamento do vídeo se daria junto à chegada do novo coronavírus, o que fez com que alguns usuários do Reddit enxergassem nos versos “a foreign disease washed upon the beach” (uma doença estrangeira chega à praia) fizessem sentido ao momento atual. Mas, obviamente, não havia como prever.

Na realidade, o que Joe Casey quis fazer para o novo álbum “Ultimate Success Today” foi dar um encerramento aos temas que a banda vem trabalhando nos últimos quatro álbuns: “Eu queria que fosse algo sobre o fim ou a morte de uma pessoa. Ter todo esse medo cósmico, mundano, concentrado em uma pessoa lidando com a morte e com a própria morte, deitada na cama no calor do verão, indo e voltando nos seus pensamentos. Talvez, enquanto os números de mortos nessa pandemia crescem em um tamanho abstrato e nós perdemos a humanidade a cada perda, vai ser importante pensar como cada morte é o apocalipse pessoal de alguém em vez de tentar transformar essa realidade em um filme de desastre hollywoodiano.”

Depois de os primeiros álbuns “No Passion All Technique” (2012) e “Under Color of Official Right” (2014) oscilarem entre o desespero e a esperança, veio ainda “The Agent Intellect” (2015) com uma abordagem mais introspectiva, enquanto que “Relatives in Descent” (2017) abre caminho para o mais recente lançamento ao endereçar questões como o que significa ser humano ou o que, de fato, é o bem e o mal. Para uma banda que sempre esteve imersa em um contexto de fúria e desordem, não fica difícil ter o momento atual se encaixando em seus comentários. Como descreveu o crítico Randall Roberts para o jornal LA Times, após assistir à performance da banda na edição de 2014 do SXSW, “Protomartyr não alcançou nenhuma lista dos mais procurados da noite e realmente não está nos comentários pós-festival. Em uma indústria que se baseia em imagem, atitudes chamativas e cantores bonitos que não irão colocar a camisa por dentro da calça com cinto sem ser por ironia, a Protomartyr não tem medo de abordar assuntos ruins que a maioria das performances em busca de fama evitam”.

Em “Processed by the Boys”, Casey traz desde o título da música uma palavra que é um desafio para os compositores por ter tantos significados, mas, neste caso, o cantor diz que “processed” (processado) se trata de uma palavra usada nas instituições como um termo neutro que esconde a brutalidade dos sistemas. “A comida é processada. Prisioneiros são processados. Se seu pedido na assistência médica é completado, ele é processado por um computador e escaneado por um funcionário. Eu queria escrever uma música que parecesse simples, mas que gerasse uma reflexão com diferentes significados. Afinal, tem muito a se processar.” Coincidentemente, o termo “processar” também é usado da mesma forma no português, o que nos possibilita correlacionar essa ambiguidade no termo e a sensação opressiva, de esmagamento, que é tão recorrente nas composições da banda.

Assim, ver um vídeo engraçado com uma letra brutal sendo lançada nos dias de hoje não nos surpreende, mas, na realidade, nos cativa por traduzir exatamente o nosso sentimento enquanto sociedade. Afinal, fomos nós mesmos quem criamos e compartilhamos memes sobre a terceira guerra mundial quando os Estados Unidos bombardearam o Irã no começo do ano. Somos nós que criamos e compartilhamos piadas sobre a covid-19 enquanto vemos pessoas sendo hospitalizadas e morrendo devido ao vírus. No melhor formato tragicômico, a maneira como absorvemos nossa realidade é através de piadas que tentam, por um lado, tornar a vida mais leve e até talvez mais esperançosa sem que, no entanto, percamos o pessimismo e a ironia de quem, ainda assim, está consciente do problema. Nada mais metamoderno do que o vídeo de “Processed by the boys” e do que a nossa capacidade de rir de um meme advindo de um programa de TV envolvido em um esquema criminoso, com formato americanizado e que, por isso, passa essa sensação familiar de forma global e globalizada.

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