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Lidia Zuin

O que você faria se a ciência comprovasse que Deus não existe?

Lidia Zuin

27/06/2020 04h00

(Foto: Alexander Andrews/Unsplash)

Aviso: O texto contém spoilers do conto "Omphalos", de Ted Chiang

Um dos melhores conselhos que já recebi foi o seguinte: quando estamos estudando algum tema, parece que ele nos persegue. Conseguimos vê-lo em tudo, mesmo quando não há conexão. Quem me deu essa dica o orientador de minha tese (que está em vias de conclusão), focada na tentativa de sobrevivência à morte por meio da memória imagética. Tenho lido muita coisa sobre consciência da morte, sobre como humanos lidam com isso do ponto de vista filosófico, artístico e psicanalítico. Por acaso, acabei conhecendo o livro "A Negação da Morte", de Ernest Becker, em uma palestra que nada tinha a ver com o assunto, mas lá foi citada e assim me serviu de próxima leitura.

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A obra, que ganhou o prêmio Pulitzer em 1974, foi escrita por um antropólogo cultural e não por um psicanalista, mas todo o conteúdo se baseia em uma análise histórica e semiótica de como autores como Kierkegaard, Freud, Rank ou mesmo Nietzsche trataram da particularidade humana de ser consciente da própria morte.

Depois de terminar a leitura desse livro, fui ler a coletânea "Exhalation" de Ted Chiang, autor sobre o qual já falei, em outra oportunidade, aqui na coluna. Talvez por já estar acostumada ao seu estilo de escrita, ou por essa coletânea ser definitivamente  melhor do que "Stories of Your Life and Others", encontrei nela alguns contos bastante intrigantes, em especial "Omphalos", ou onfalo, no português.

O termo, que no grego antigo significa "umbigo", também remete a um artefato que aborda o que seria o epicentro da criação do mundo. No conto, o autor reflete sobre o tema explorado no livro "Omphalos: An Attempt to Untie the Geological Knot" (1857), de Philip Henry Gosse. É nessa obra que se discorre a hipótese de Omphalos, isto é, de que o mundo físico em que vivemos é apenas uma ilusão criada por Deus. Na realidade, o que Gosse pretende é se aproximar da narrativa bíblica de origem do mundo, mas com olhar mais científico, tentando sustentá-la de forma racional e, se possível, empírica. E é exatamente essa a postura da protagonista do conto de Chiang (que, aliás, como autor de ficção científica, preocupa-se muito em ser cientificamente verossímil e correto): a arqueóloga Dorothea Morrell.

A história se desdobra nas orações feitas por Dorothea que, apesar de ser cientista, compartilha com seus colegas de profissão a crença de que Deus, de fato, existe. Sabemos que muitos cientistas como Isaac Newton acreditavam em Deus ou eram cristãos, mas, no universo criado por Chiang, a Igreja Ortodoxa se manteve como um pilar científico, de modo que fé e ciência se equilibram, até que Nathan McCullough, diretor do Museu de Filosofia Natural (campo do conhecimento precursor às ciências naturais, como é o caso da física), está em vias de publicar um artigo científico que comprovaria a inexistência de Deus ou, na realidade, de que a existência da humanidade não era um milagre ou parte de um plano divino maior.

Nesse universo criado por Chiang, cientistas e religiosos compartilham da premissa de que a Terra surgiu há 8.912 anos. Isso é reforçado a partir de objetos antigos, como lâminas de árvores ancestrais que, através de seus círculos de crescimento, demonstram sua idade até que alguns exemplos têm o miolo liso por se tratarem de árvores primordiais, isto é, as primeiras árvores a serem criadas ou surgidas no mundo. Em outras palavras, os cientistas de "Omphalos" não estão pesquisando para tentar descobrir a origem das coisas, mas sim o propósito delas nos planos divinos e, em especial, qual seria a nossa razão de existir, enquanto espécie.

O exercício especulativo de Chiang é um primoroso exemplo de como uma boa ficção científica combina fatos verdadeiros e científicos com possibilidades lógicas e convincentes o bastante para que o leitor tenha sua descrença suspensa. O artigo a ser publicado por McCullough seria de um astrônomo que observa a estrela 58 Eridani, análoga ao nosso Sol, mas que fazia parte de um extraordinário sistema geocêntrico. Ou seja, a estrela é o corpo que orbita em torno do planeta, e não o contrário. Esse planeta, por sua vez, também tinha características muito parecidas com a da Terra e, em intervalos de 24 horas, seu movimento oscilava entre se direcionar à Terra e se afastar. Para Lawson, há três possíveis hipóteses: ou a humanidade foi um apenas um teste para que Deus desenvolvesse a verdadeira e aperfeiçoada civilização (também hipotética) de 58 Eridani, ou então seríamos o plano final divino, ou apenas um efeito colateral não intencional.

Dorothea não se dá por convencida pelas hipóteses, até que McCullough argumenta que, na linguística, filólogos não conseguem explicar a multiplicidade de línguas que, por sua vez, não derivam de uma suposta língua primordial, por exemplo, o indoeuropeu. Em outras palavras, os demais idiomas foram criados ao longo do tempo pelos próprios humanos, assim como a escrita, afinal, não há registros escritos pelos humanos primitivos. Se, do ponto de vista científico desse universo, pesquisadores estariam desafiados a tentar entender os motivos de todas as coisas e, assim, reforçar sua fé, o que significa entender que nada tem um sentido intrínseco e que não há um plano divino maior?

No filme "The Tree of Life", o casal interpretado por Brad Pitt e Jessica Chastain perde um filho. Em um dos monólogos mais marcantes, a personagem de Chastain dialoga com Deus sobre o propósito da vida

McCullough dá como exemplo uma tragédia pessoal, a perda de um filho que morreu de influenza. Se, de fato, nada tem razão de ser ou se conecta a um plano divino maior, a morte de seu filho não faz sentido nenhum. A dedicação à carreira científica de Nathan, portanto, era uma maneira de tentar entender, decupar esse plano divino e que, apesar de as convicções pessoais levarem a questionamentos, não há como negar os elementos que compõem a fisicalidade do mundo.

Em seu trabalho, McCullough chegou a encontrar evidências que lhe pareceram ser "marcas d'água" da ação de Deus, e isso teria lhe dado forças para sobreviver àquele trágico momento. No entanto, a descoberta de um sistema tão parecido com o nosso só demonstra que não há nada de único e milagroso na Terra e na humanidade, então todas as descobertas científicas nada têm a ver com o desvendamento de um motivo maior. Contudo, Dorothea argumenta que, apesar de a ciência poder ser usada como uma forma de amenizar nossas dores existenciais, ela está, acima de tudo, comprometida com a busca pela verdade, uma constatação que McCullough, por sua vez, rebate: "A ciência não é apenas uma busca pela verdade. É a busca por um propósito".

Diante disso, Dorothea também começa a questionar qual é o sentido de seu trabalho: que diferença faz dedicar-se às escavações se tudo é irrelevante, se nada faz sentido ou compõe um plano maior? Mas, diferentemente da comunidade científica, a Igreja não se demonstrou tão abalada diante da descoberta, afinal, "a Igreja como uma instituição sempre foi capaz de derivar suas forças a partir da evidência quando ela é útil e ignorar quando não é". Por mais que a Igreja aceitasse que a história de Adão e Eva não é completamente verdadeira, diante da evidência dos fósseis de hominídios por todo o planeta, a narrativa permaneceu como uma alegoria na qual as pessoas se baseiam. Mas, como cientista, Dorothea sempre teve sua fé calcada na evidência e, se ela demonstrou que a Terra não é o centro (ou umbigo) do universo, então qual é o ponto de existirmos?

Ernest Becker, em "A Negação da Morte" aborda essa questão a partir de outra perspectiva, a da consciência da morte. Qual é o propósito de acordar todos os dias, escovar os dentes, tomar banho, alimentar-se e trabalhar se, independentemente dos seus hábitos, você irá inevitavelmente morrer — mais ou menos rápido, mais ou menos dolorosamente, mais ou menos aleatoriamente? Becker defende que não caiamos nesse absurdo niilista, ao depararmos com a verdade racional da existência humana, reprimindo esse conhecimento através de neuroses que, neste caso, são positivas, porque encontramos narrativas e sentidos postiços que nos ancoram e nos dão sentido à vida. Para Kierkegaard, a melhor forma de preencher esse vazio existencial é através da religião, enquanto Freud teria buscado obsessivamente substituir esse apoio na psicanálise e na ciência.

O que vemos hoje, e que já foi debatido aqui também, é que a inovação tecnológica e científica se tornou a nova grande narrativa sobre a qual o mundo secular se debruça. Como Harari argumenta em "Homo deus", estamos vivendo um momento no qual a tecnologia será capaz de tornar real aquilo que antes era apenas apoiado pela fé e por alegorias. O fim da morte, por exemplo, almejado pelos transumanistas, é uma dessas "neuroses" que o homem contemporâneo encontrou para dar sentido à vida. E quando eliminamos a morte da equação?

Para Becker, quando Freud desenvolveu sua teoria psicanalítica, ele estava tão obcecado em torná-la o centro do seu mundo que o peso de acreditar em si mesmo e nas suas ideias ficou grande demais para um indivíduo. Acreditar em Deus, seguir e praticar uma religião significa apoiar-se em algo maior do que nós mesmos enquanto indivíduos, é nos colocar dentro de uma narrativa em que somos um personagem encaixado, com destino, propósito e missões.

Religiões, ideologias, filosofias, ciências: todos esses campos do conhecimento, da cultura e da arte são grandes categorias que nos orientam, mas que, em última instância, não têm um propósito intrínseco senão o de tentar conciliar a nossa existência dupla como animal e como ser simbólico, como defende o autor.

Voltando ao início deste texto (sobre o conselho de meu orientador, de tentar separar o joio do trigo quando estamos muito contaminados pelo nosso objeto de pesquisa): as duas obras que "caíram no meu colo" de fato fizeram sentido e agregaram para a minha pesquisa. Mas, como é que elas chegaram até mim? Parte de um plano divino? Um dia, durante um jantar, ouvi de colegas de trabalho que minha capacidade de escrita e pesquisa eram, na realidade, uma capacidade mediúnica e que espíritos, entidades extraterrestres, ancestrais ou qualquer coisa do gênero estariam me direcionando e canalizando essas mensagens que concretizo, por exemplo, neste texto. Essa é a premissa que Chiang tenta quebrar: se fosse cientificamente comprovado que não há espíritos, entidades extraterrestres ou qualquer outra criatura divina nos guiando na nossa jornada, como lidaríamos com isso?

Uma outra sugestão está na obra de Vilém Flusser, quando ele fala que a realidade não se baseia em lógica de causalidade, nem de fatalidade (no sentido de existir um destino), mas sim do caos: as coisas acontecem aleatoriamente e, mesmo que haja fundamentação científica e empírica, o próprio fato de o Universo existir foi uma aleatoriedade. Para lidar com essa perspectiva filosófica, vamos precisar de mais do que livros e aulas — vamos precisar de terapia. E isso é, justamente, uma das saídas também vislumbradas por Becker: na figura do psicanalista, encontramos alguém que consegue organizar nossa vida e nossa realidade em narrativas e nos conduzir à reflexão e crítica. Vai de cada um. Ou, como se diz no inglês, "pick your poison".

Sobre a autora

Jornalista e pesquisadora em futurologia. Mestre em semiótica, doutoranda em artes visuais, palestrante, professora e escritora de ficção científica.

Sobre o blog

Artigos sobre os impactos das inovações tecnológicas na sociedade e na cultura com uma pitada de arte e ficção científica.