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Lidia Zuin

E se uma tecnologia te fizesse ficar imune à beleza das pessoas?

Lidia Zuin

09/01/2020 04h03

A comédia romântica "O Amor é Cego" (2001), protagonizada por Jack Black e Gwyneth Paltrow, ficou conhecida por contar a história de um homem que se apaixona por uma mulher gorda, mas não a vê dessa maneira. Apesar de lidar com estereótipos contrastantes e controversos, o filme, no entanto, trouxe à cultura de massa a reflexão sobre relacionamentos e aparência física.

 

Aviso: O artigo contém spoilers do conto "Liking What You See: A Documentary", de Ted Chiang.

Publicado em 2002, o compilado de contos "Stories of Your Life and Others", do escritor norte-americano Ted Chiang, traz dentre eles a obra que deu origem ao filme "A Chegada" (2016), protagonizado por Amy Adams. A coletânea reúne uma série de pequenas histórias que especulam possibilidades científicas a partir da linguagem, da matemática e de tecnologias como a fictícia "calliagnosia", apresentada em "Liking What You See: A Documentary".

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Apesar de se utilizar da literatura, Chiang busca copiar o ritmo e o formato de um documentário. Devido a esse estilo transmidiático, o conto chamou a atenção de empresas como a AMC, em 2017, que anunciou uma nova parceria entre Chiang e Eric Heisserer, roteirista de "A Chegada", na produção de uma série baseada no conto, mas que ainda não possui data de lançamento. Em "Liking What You See", somos apresentados a uma sociedade de um futuro próximo no qual as pessoas têm a possibilidade de utilizar uma tecnologia capaz de modificar seus cérebros, a ponto de não mais fazer julgamentos sobre a aparência alheia — a chamada "calliagnosia" ou "calli" para facilitar a leitura.

Ao longo da história, usuários e críticos da tecnologia comentam a respeito dela. O ápice se dá na votação sobre a obrigatoriedade do uso da "calli" em espaços coletivos, como universidades e escolas. Com o lançamento de um novo modelo de óculos inteligentes embutidos com o software Visage, seus usuários poderiam ver uns aos outros modificados, como se tivessem feito cirurgia plástica. Pode parecer algo distante, mas acredite, já é passado: em 2019, o Instagram levantou uma proibição no desenvolvimento de filtros que emulam o efeito de cirurgias plásticas na rede, de modo a evitar problemas de transtorno de imagem e distorção corporal – no entanto, já sabemos que o problema é  mais complexo do que isso quando falamos de filtros.

E é essa a questão levantada por Chiang, já em 2002, explorando a possibilidade de transpor essa visão modificada do corpo alheio para além das postagens do Instagram ou mesmo transmissões de vídeo ao vivo para a vivência cotidiana — assim como se os Spectacles do Snapchat não só gravassem o que vemos, mas também modificassem a nossa visão com a inserção de filtros em tempo real. Curiosamente, Chiang faz justamente a suposição de que esse software primeiro surgiu como uma forma de entretenimento, mas a grande adoção passou a ser vista como uma ofensa para os universitários que, então, implementaram um código ético no espaço acadêmico para proibir o dispositivo no campus.

A raiz do problema não está na tecnologia, mas no que eles chamam de "lookism". No português, podemos encontrar a tradução como "unatractifobia", que diz respeito ao medo ou aversão às pessoas consideradas feias, mas que no contexto de Chiang se trata de um conceito mais social do que médico: é a aversão cultural e a rejeição estética que beira o racismo, por exemplo. Para facilitar a leitura, vou adotar o estrangeirismo "lookismo" nesse trecho traduzido livremente:

"Por décadas, as pessoas desejam falar sobre racismo e machismo, mas eles ainda estão relutantes para falar sobre lookismo. Ainda assim, esse preconceito contra pessoas que não são atraentes é incrivelmente disseminado. As pessoas fazem isso mesmo sem ter aprendido com alguém, o que já é suficientemente ruim, mas em vez de combater essa tendência, a sociedade moderna a reforça ativamente.

Educar as pessoas, conscientizá-las sobre esse problema, tudo isso é essencial, mas não suficiente. É onde a tecnologia se encaixa. Entenda a calliagnosia como um tipo de maturidade assistida. Ela permite que você faça tudo que você deveria: ignorar a superfície para ver em profundidade."

Mas como a calli funcionaria? O depoimento do personagem fictício Joseph Weingartner tenta explicar a tecnologia a partir do ponto de vista neurológico. Existe uma condição médica real chamada agnosia associativa, que faz com que as pessoas não consigam nomear ou reconhecer um objeto, mas ainda assim podem percebê-los. Por outro lado, a agnosia aperceptiva torna a pessoa incapaz de sequer perceber objetos. O próprio termo agnosia traz a junção do grego a+gnosis, que significa "não conhecimento". Ao juntar a palavra ao sufixo "calli", que significa beleza também em grego, uma pessoa com calliagnosia é aquela que consegue perceber rostos, mas não consegue dizer a diferença entre "um queixo pontiagudo ou recedido, um nariz reto ou retorcido, pele lisa ou pele manchada. Ele ou ela simplesmente não experienciam qualquer reação estética a essas diferenças".

Chiang, que tem uma grande preocupação em tornar suas especulações cientificamente plausíveis, explica que a técnica da calli é possível por conta de certos padrões neuronais:

"Todos os animais têm critérios para a avaliação do potencial reprodutivo de seus parceiros, e com isso foi desenvolvido um 'circuito' neural capaz de reconhecer esses critérios. A interação social humana é centrada em nossos rostos, de modo que nosso circuito é bastante afinado no potencial reprodutivo de uma pessoa a partir de sua face. Você experiencia a operação desse circuito ao pensar que alguém é bonito, feio, ou algo entre os dois. Ao bloquear os caminhos neurais dedicados à avaliação dessas características, nós podemos induzir a calliagnosia."

Esse tipo de solução seria importante, por exemplo, se pensarmos na maneira como a moda, os gostos e a própria cultura mudam contínua e cada vez mais rapidamente. Ao mesmo tempo em que esse comportamento torna impossível de se alcançar a perfeição e mantê-la, também é difícil de dizer o que é um rosto bonito. Apesar disso, há certos consensos como o aspecto de saúde refletido em uma pele lisa ou a simetria de um rosto – mesmo que não sejamos capazes de reconhecer diferenças milimétricas, medições feitas com indivíduos considerados mais atraentes no senso comum demonstraram que essa simetria era efetivamente maior.

Todas essas características, no entanto, podem partir de uma premissa genética, mas sofrem alterações fenotípicas ao longo da vida de uma pessoa: doenças, acidentes, perturbações hormonais ou mesmo variações nutricionais e o envelhecimento deixam marcas no corpo e fazem com que a aparência das pessoas mude com o tempo. Mais importante do que manter a cirurgia plástica e os cosméticos em dia ou ainda o desenvolvimento de transtornos alimentares e de imagem, por que não simplesmente tirar o fator de julgamento estético na aparência das pessoas?

No universo fictício de Chiang, pessoas com calli não seriam insensíveis a padrões da moda e de beleza: um usuário saberia que uma determinada cor de batom está em alta, mas não expressaria nenhum julgamento sobre isso ao entender uma diferença estética ou de valor simbólico entre alguém usando esse batom ou não. Em outras palavras, o que a calli faz é remover a predisposição inata à discriminação, ensinando as pessoas a ignorar a aparência alheia durante a socialização.

Para entender como isso se daria no mundo criado pelo autor, somos apresentados ao depoimento da estudante Tamera Lyons, que cresceu usando calli. Para crianças e adolescentes, a adoção da tecnologia poderia ser um benefício, como comenta o fundador da escola Saybrook, onde Tamera estudou: "Todos os adolescentes estão pedindo cirurgias plásticas para que eles possam se parecer como modelos. Os pais estão fazendo sue melhor, mas não podemos isolar essas crianças do mundo; elas vivem em uma cultura obcecada pela imagem." Pode parecer extremo ou distópico, mas em países como a Coreia do Sul, adolescentes ganham cirurgias plásticas de presente de seus próprios pais.

Se uma tecnologia como a calli pudesse ser legalizada e disseminada, quais seriam, então, os benefícios de se educar crianças dessa maneira? Para a mãe da personagem Tamera, Rachel Lyons, essa decisão foi importante também na escolha da escola onde sua filha estudou e onde a calli era disseminada: muitos dos alunos possuíam algum tipo de anormalidade facial advinda de casos como câncer ósseo, queimaduras, doenças congênitas e todas essas crianças foram propositalmente matriculadas nessa escola para não sofrer com a discriminação e o ostracismo. Como consequência, Rachel narra que uma criança de 12 anos com marcas de queimadura em parte do seu rosto chegou a ser eleita como representante de classe:

"Ela tinha uma paz maravilhosa consigo mesma, era popular entre as crianças que provavelmente a teriam excluído em qualquer outra escola. E eu pensei, esse é o tipo de ambiente onde quero que minha filha cresça. Sempre dizem às meninas que seu valor está atrelado à sua aparência; suas conquistas são sempre amplificadas se elas são belas e diminuídas se não são. Ou pior, é dito a algumas garotas que elas podem viver sua vida baseada na aparência, então nunca desenvolverão suas mentes. Queria deixar Tamera longe desse tipo de influência. Ser bonita é fundamentalmente uma qualidade passiva; mesmo quando você trabalha para isso, você está trabalhando pela passividade. Queria que Tamera valorizasse a si mesma em termos do que ela poderia fazer, tanto com sua mente quanto com seu corpo, não em como decorativa ela era. Não queria que ela fosse passiva e estou contente que ela não se tornou uma pessoa assim."

Mas, após terminar a escola, Tamera decide "desligar" sua calli. Aos poucos, a personagem começa a reconhecer algumas mudanças na sua percepção da aparência das pessoas e de si mesma. Ela descobre que, afinal, ela é bonita — e, para se certificar, chegou a criar um hábito de sempre checar a si mesma nos espelhos que encontrava ao longo do dia. Mas, apesar de desfrutar dessa característica recém descoberta, Tamera ainda não conseguiu superar o término de um namoro recente e, por isso, vai atrás do ex, Garrett, para tentar "reconquistá-lo" e também convencê-lo a desligar sua calli – afinal, assim ele poderia descobrir que sua ex é bonita e, então, reatar o namoro.

Curiosamente, porém, ao mostrar uma foto de seu ex para uma colega da faculdade, Tamera é surpreendida pelo questionamento sobre Garrett ter sido quem terminou o namoro, afinal, o rapaz nem era bonito se comparado à estudante. Mas Tamera começa a entender que a calli é como se fosse amor: "quando você ama alguém, você não vê a aparência. Não vejo Garrett da maneira como vejo os outros, porque ainda tenho sentimentos por ele". Depois de aprender a se maquiar e se preparar para uma chamada de vídeo com Garrett, Tamera nota que o garoto reagiu à sua imagem com muito mais intensidade do que ela com relação a ele. Sua conclusão é que ao mesmo tempo que ela não deixou de amá-lo depois de ter visto sua aparência "real", ela também esperava que a recíproca fosse verdadeira, mas o que ocorre é que Garrett se torna autoconsciente de sua aparência não tão privilegiada quanto a de Tamera.

Enquanto a garota conseguiu se envolver com alguns rapazes na faculdade, o mesmo não aconteceu com seu ex. Se Garrett era popular no colegial devido à sua inteligência e senso de humor, a sua recente percepção de beleza fez com que ele perdesse a confiança e, assim, prejudicasse sua desenvoltura social. Como consequência, Garrett decidiu religar sua calli, o que fez com que ele não mais encarasse Tamera com intensidade – é o momento decisivo em que a estudante reconhece que a sua persuasão em fazer Garrett desligar a calli era parte de uma estratégia de sedução para que os dois reatassem.

E já que falamos da Coreia do Sul, há um filme especialmente interessante e perturbador chamado "Beautiful", dirigido por Juhn Jai-hong, que trata justamente da trajetória aterrorizante de uma mulher considerada muito bela e que, por isso, acaba sendo perseguida por um homem obcecado por sua aparência. Em seu conto, Chiang explora termos como "charme" e a ideia de que a beleza "enfeitiça", ao ponto de que tal traço pode ser usado, na verdade, para manipulação – com a calli, as pessoas se tornariam imunes, no entanto. O autor conta nas anotações que encerram a coletânea que a inspiração para a história surgiu de um experimento feito por psicólogos no qual um formulário falso de matrícula universitária era supostamente esquecido por alguém, em um aeroporto. As respostas eram sempre as mesmas, o que mudava era a foto do candidato fictício. Segundo Chiang, "as pessoas eram mais propensas a enviar a aplicação se o candidato fosse atraente. Talvez isso não seja surpreendente, mas ilustra como somos influenciados pelas aparências; nós favorecemos pessoas bonitas mesmo em uma situação na qual nunca as encontramos."

Cena do filme "Beautiful"

Ao longo dos depoimentos de "Liking What You See", somos apresentados a diferentes olhares sobre a tecnologia: seria ela uma censura ou uma libertação das amarras impostas pela indústria da moda, da publicidade, dos cosméticos? Enquanto há um certo consenso de que a educação seria um dos melhores modos de se contornar essa questão, é difícil acreditar que ela sozinha seria suficiente. Dentre os argumentos mais interessantes está o fato de que a beleza tem sido usada comercialmente como uma espécie de droga, um "estímulo sobrenatural", uma vez que nos apresenta um pico de fruição estética e, assim, cria uma descompensação na nossa percepção da realidade e, por consequência, do relacionamento com outras pessoas – sejam eles amorosos ou não.

Com a chegada dos óculos embutidos com filtro de cirurgia plástica, os personagens estão constantemente sendo encarados por supermodelos: "empresas de software oferecem deusas que irão lembrá-lo de seus compromissos. Todos nós já ouvimos sobre homens que preferem namoradas virtuais em vez de verdadeiras, mas eles não são os únicos afetados. Quanto mais tempo passamos com essas aparições digitais em nosso entorno, mais nossas relações com seres humanos reais irão sofrer." Dito e feito: no Japão, jovens têm dificuldade de se relacionar uns com os outros e cada vez mais homens estão se casando ou se relacionando com personagens fictícias.

Por outro lado, críticos fictícios do conto indicam que observar a beleza é como assistir à performance de um atleta olímpico: sua autoestima não é afetada, mas na verdade as pessoas se sentiriam inspiradas pela excepcionalidade desses indivíduos. Argumentando que feministas são responsáveis por tornar a beleza algo político, um dos críticos da callignosia sugere que tirar essa valoração estética tornaria as pessoas insensíveis e, portanto, separadas de uma importante esfera da realidade. Contudo, se conferirmos obras como "O Mito da Beleza", de Naomi Wolf, encontramos notações históricas de como o padrão de beleza feminino foi se desenvolvendo ao longo das eras como uma das formas de manipular o comportamento e a definição do papel da mulher na sociedade.

Neste livro publicado em 1990, viajamos pelo tempo e vemos como o ideal de beleza feminino mais encorpado dos quadros renascentistas (muito ligado à questão da fertilidade) muda ao longo dos anos com a chegada de corpetes que limitam o corpo e traduzem a rígida moral vitoriana para então nos anos 1920 o movimento das sufragistas ir de encontro com a tendências das melindrosas: mulheres esguias e sem curvas. Passado esse momento, temos mais uma onda de valoração do corpo feminino mais encorpado, acinturado e com traços de feminilidade fértil com os anos 1950 e o ideal do Sonho Americano, mas nos anos 1970, com um novo levante feminista, somos novamente surpreendidos por tendências como as supermodelos – da aparência infantil de Twiggy ao heroin chic de Kate Moss e o surgimento das top models, de Linda Evangelista a Giselle Bündchen.

Para alcançar esses ideais, as mulheres se submetem a exercícios extenuantes, dietas restritivas, procedimentos cosméticos e cirúrgicos, softwares de edição de imagem: subterfúgios que ocupam uma carga emocional e intelectual aprisionante e adoecedora. Para Wolf, estas são estratégias de controle feminino através do aprisionamento do corpo nos momentos em que a mentaliadde feminina passa a se "rebelar". Diante isso, hoje temos essas estatísticas americanas que revelam que apenas 1 em cada 10 pessoas com transtorno alimentar recebe tratamento e 80% das meninas ou mulheres que passaram por um tratamento não têm acompanhamento suficiente e recomendado para sua condição. Temos a anorexia como a terceira doença crônica mais comum entre os adolescentes, sendo que 50% das garotas entre 11 e 13 anos se considera acima do peso independentemente do que mostra a balança e o IMC. Na realidade, já temos dados que mesmo aos quatro anos de idade, já há garotas insatisfeitas com seu próprio corpo. Por fim, também temos a estatística de que os níveis de mortalidade por anorexia nervosa são 12 vezes maiores do que todas as outras causas de morte entre mulheres de 15-24 anos.

Nesse sentido, a personagem Maria DeSouza, uma das mais ativas defensoras da calli no universo ficcional de Chiang, traz justamente a menção a um suposto comercial no qual uma agência de modelos reagiu à chegada da tecnologia usando uma foto de uma supermodelo com a frase: "Se você não a visse mais como bonita, de quem seria o azar? Dela ou seu?" Em outras palavras, a reação contrária ao procedimento é de fazer com que as pessoas se sitam perdendo algo ou que estas se arrependam de ter eliminado essa dimensão da própria vida – alguns personagens chegam a comparar a calli até mesmo a um contexto Orwelliano.

Mas mais do que orientar a uma conclusão de qual seria a melhor forma de lidar com a tecnologia e com a questão social, o conto termina com a ascensão de movimentos contrários à obrigatoriedade da calli. Esses movimentos, porém, são comprovadamente promovidos pela indústria cosmética, mas são suficientemente fortes para influenciar o resultado negativo da votação pela obrigatoriedade da tecnologia em uma universidade. Por outro lado, há também a novidade de que um novo fabricante de óculos inteligentes conseguiu criar um dispositivo que possibilita que a tecnologia da calli seja ligada e desligada quando quiser. Isto é, usuários poderiam chegar a um consenso sobre relevância a fruição da beleza alheia, mas sem estar constantemente suscetível à manipulação (seja ela midiática ou não) e também não completamente dissociado da realidade.

Contudo, bem sabemos como o mercado sempre acha sua maneira de se adaptar: já vemos isso hoje com movimentos apropriados pelo capitalismo como é o caso do body positivity ou positividade corporal e as campanhas publicitárias de marcas como a Dove. Mas junto à ela também temos a ascensão de uma outra perspectiva acerca da aparência das pessoas e dos corpos como uma resposta ao "lookismo" que vivenciamos do lado de cá, fora da ficção. A body neutrality ou neutralidade corporal, por exemplo, promove a (re)educação das pessoas para que elas conquistem o posto que é forçado pela tecnologia fictícia da calli: simplesmente ser neutro com relação aos corpos e rostos, sem fazer julgamentos e entender que um corpo é um corpo e não um instrumento de beleza e fruição comercial.

Apesar de a publicidade ter adotado algumas estratégias para incluir diversidade em suas imagens e, assim, torná-las mais naturalizadas no imaginário cultural, a guerra ainda persiste entre ambiguidades e ambivalências travadas entre a lucratividade e a saúde mental — afinal, em um mesmo veículo midiático podemos ser interpelados por publicidades que estimulam a matrícula numa academia ou procedimentos cosméticos e também sermos atraídos por um novo lançamento de fast food, bebidas alcoólicas e doces. Não há nada de novo nesta equação: é na contínua insatisfação dos consumidores que o lucro é gestado. Como alguns defensores da neutralidade corporal dizem: primeiro tentam fazer com que nos odiemos para comprar produtos e serviços que nos consertem, depois nos obrigam a nos amar e comprar produtos e serviços que nos ajudem a isso. A neutralidade, a calliagnosia, portanto, seria capaz de nos emancipar desses discursos falaciosos no universo fictício proposto por Ted Chiang.

A pergunta que deixo, porém, é: caso houvesse uma tecnologia capaz de "facilitar" esse processo de emancipação do julgamento estético, você teria coragem de adotá-la ou pelo menos experimentá-la? Chiang deixa nos comentários finais ao seu conto que sim, ele definitivamente a testaria. Foi pensando nisso que o designer americano Craig Moscony criou um kit de divulgação fictício da callignosia como um produto acessível às pessoas. Enquanto essa tecnologia não chega, fica ao menos o convite para repensar a nossa relação entre corpo e beleza, sejam eles nossos ou alheios.

Sobre a autora

Jornalista e pesquisadora em futurologia. Mestre em semiótica, doutoranda em artes visuais, palestrante, professora e escritora de ficção científica.

Sobre o blog

Artigos sobre os impactos das inovações tecnológicas na sociedade e na cultura com uma pitada de arte e ficção científica.