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Lidia Zuin

O amanhã já chegou: novo coronavírus entrega em casa um novo futuro

Lidia Zuin

02/04/2020 04h00

Foto: EPA-EFE

Um dos conceitos conhecidos àqueles que estudam futurologia e inovação tecnológica é o "fully automated luxury communism" (comunismo de luxo automatizado), que chegou a ter um manifesto publicado por Aaron Bastani em 2019 — e ao qual gostaria de retornar, com mais profundidade, em outro texto. Em poucas palavras, o que o movimento traz é a defesa de um futuro de automação capaz de gerar riquezas suficientes para que todos tenham suas necessidades atendidas, sejam elas no que diz respeito ao acesso irrestrito à alimentação, saneamento, moradia e educação, bem como o lazer, sem, no entanto, exercer uma profissão assalariada. No FALC, sigla do movimento, todos poderão fazer aquilo que gostam e não mais relacionar trabalho e dinheiro às necessidades de sobrevivência, afinal, todas elas seriam cumpridas pelo sistema e, por isso, todos teriam tempo e estímulo a manter hábitos de vida saudáveis.

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É verdade que o termo muitas vezes apareceu pela internet entremeado ao meme do Fully Automated Luxury Gay Space Communism (comunismo espacial de luxo, gay e automatizado), mas o que Bastani e outras vozes do FALC defendem é um futuro utópico de determinismo tecnológico no qual a inteligência artificial e as demais tecnologias exponenciais seriam capazes de substituir o trabalho humano e, assim, gerar as riquezas a serem distribuídas entre nós. É algo que Bill Gates e outros empresários já propuseram, de certa forma, quando mencionam que robôs deveriam ser taxados, porém sem necessariamente cair na metanarrativa do comunismo.

Gates e outros empresários pensam em taxar robôs para, em última instância, criar uma renda básica universal a partir das riquezas geradas pela automação. Apesar do que pode parecer à primeira vista, o conceito de renda básica universal não precisa necessariamente ter um cunho esquerdista: há entusiastas de ambos os espectros políticos e econômicos. Embora o diálogo tenha ficado um tanto restrito a nichos da economia e da tecnologia, em especial àqueles que trabalham com blockchain, a ideia retornou com força por conta daquilo que, no momento, é nossa realidade inevitável: a covid-19.

Por conta dos procedimentos de quarentena e devido às mortes, a economia desacelerou e diferentes empreendimentos estão passando por uma crise que pode ser fatal. Para contornar a situação, nos Estados Unidos, por exemplo, foi aprovado recentemente pelo Senado um pacote de estímulo de US$ 2 trilhões a serem injetados na economia — parte da quantia será usada para distribuir US$ 1,2 mil para a maioria dos americanos. Apesar de ter suas diferenças, a iniciativa se assemelha muito às propostas levantadas pelo empresário Andrew Yang, que acabou desistindo de concorrer à presidência dos Estados Unidos. Mas, assim como a maioria dos advogados da renda básica universal a propunham como uma solução ao desemprego gerado pelas novas tecnologias, não havia como imaginar que a covid-19 poderia se tornar o grande impulso para essa virada de chave no país.

No Brasil, a discussão também está acontecendo: na última semana, 26 dos 27 governadores aprovaram uma renda básica a todos os brasileiros a partir de uma lei sancionada por Lula em 2005, bem como a suspensão por 12 meses do pagamento das dívidas dos estados com a União e bancos públicos, além da viabilização emergencial de recursos "livres" do governo federal. Ainda a ser avaliada pelo governo federal, as propostas preveem que o isolamento social continuará sendo usado como método para evitar a disseminação do novo coronavírus, algo ao qual o presidente é contrário, apesar das recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS).

A despeito do que tem feito Bolsonaro, governadores como João Doria continuam reforçando a importância de se manter a estratégia e, com isso, as empresas estão se adaptando ao permitir que seus funcionários trabalhem de casa, ou então mudando seus produtos e serviços de modo a se tornarem digitais e/ou passíveis de entrega. Assim como no jogo de ficção científica de Hideo Kojima, Death Stranding, os entregadores se tornaram os heróis desse cenário pandêmico no qual se prolifera não apenas o vírus, mas também as lives, os cursos online, os e-books gratuitos, os filmes e as séries, o acesso a banco de dados e serviços por assinatura. O que era para ser já natural, isto é, a digitalização outrora professada por evangelistas tecnológicos e coaches de mindset ágil, está acontecendo de maneira forçada pela covid-19 — e os palpites não são poucos, como quando o virologista Atila Iamarino diz que não adianta sair de casa e achar que encontraremos o mesmo mundo de antes, porque ele não existe mais.

E é por conta dessa pressão exercida pela pandemia e pela quarentena que a multiplicação de conteúdos digitais transbordam a solidariedade com o isolamento para se tornarem intensificadoras da ansiedade, da depressão e do FOMO (fear of missing out, ou medo de perder algo, de não conseguir dar conta de tudo que está acontecendo, como se isso fosse possível).  Estamos nos atropelando nessa transição para um futuro que tanto se fala nos painéis de eventos como o SXSW (cancelado pela pandemia), mas que nada mais era do que um presente sufocado — talvez porque não quiséssemos mudar, talvez porque ainda era lucrativo manter o paradigma antigo.

Não deveríamos ter que esperar por uma pandemia para notar a urgência disso, não deveríamos deixar pessoas adoecerem e morrerem, não merecíamos passar por essa crise durante um momento de dúvida perante as instituições e de líderes mundiais que questionam e subestimam a ciência. Mas é o que temos. E torçamos para que, realmente, esse preço tão alto quanto os cursos de mudança de mentalidade possa levar a uma mudança real e não apenas no plano das ideias.

Essa mudança, porém, é sintomática quando vemos que a crise econômica impulsionada pela covid-19 traz de volta, com mais força, o debate sobre a taxação das grandes fortunas e a cobrança de atitude por parte dos mais ricos. No Brasil, diferentes empresários, como Luciano Hang da Havan, que concentra uma das maiores fortunas do país, já pronunciaram sua vontade de não pagar salário aos seus funcionários durante a quarentena e liberar o FGTS. Luiza Helena Trajano, maior acionista da rede Magazine Luiza, se pronunciou durante os últimos dias sobre a doação de  R$10 milhões a serem gastos em equipamentos médicos. Fora do Brasil, temos o caso de Mark Zuckerberg, Priscilla Chan e Bill Gates doando US$25 milhões para um grupo de pesquisa da covid-19, mas nem por isso a internet deixou barato: mesmo sabendo que o valor é a somatória da doação de três empresários, ele representa apenas 0,045% da fortuna de US$ 55,1 bilhões do fundador do Facebook. Mais do que relativizar o valor da doação em si, o que está em xeque é a completa falta de sentido da existência de fortunas concentradas em pessoas e empresas que pouco devolvem à sociedade.

Contudo, ao mesmo tempo em que grandes empresas que cresceram durante os últimos anos estão sob ameaça de extinção, como é o caso da WeWork, por outro lado, nossas críticas sobre as big techs (grandes empresas de tecnologia) são paralisadas por um evento que não poderíamos prever: a pandemia. Como escreve Steven Levy para a Wired:

"Agora que nossas vidas estão dominadas por essas gigantes, nós a vemos como exploradoras ávidas por dados pessoais e monstros anticompetitivos que degradaram a sociedade de maneira geral. Antes da pandemia, havia muita expectativa de que essas empresas seriam controladas, senão separadas. Mas o deus ex machina de uma enorme crise de saúde pública mudou o cenário. A pandemia pode ter o efeito de uma justificável guerra travada por um presidente em apuros com sua popularidade baixa. Enquanto os desvios das Big Techs ainda estão aparentes, seus verdadeiros feitos agora importam mais. Nós estamos no Facebook para confortar uns aos outros enquanto fisicamente nos confinamos e nos afastamos das pessoas. O Google está sendo recrutado como um potencial pólo para uma das nossas maiores necessidades, o teste da covid-19. Nossa cadeia de fornecedores pessoal (literalmente a única forma de muitos de nós comprarmos comida e suprimentos) é a Amazon. Quem diria que a crítica às empresas de tecnologia estaria suscetível a um vírus?"

E é por conta dessa reviravolta das big techs que alguns pensadores como Byung-Chul Han temem que, no fim das contas, a Europa aprenda com o modelo chinês de vigilância e ações mediadas pela análise de dados. Não é impossível: já existem países ocidentais usando drones para vigiar as ruas e tomar ação contra aqueles que quebrarem a regra do isolamento, bem como câmeras termais estão sendo instaladas em aeroportos para detectar passageiros com temperatura corporal elevada (um dos possíveis sintomas do novo coronavírus). Então, se por um lado a covid-19 pode nos levar a um futuro mais digitalizado e automatizado, talvez até com a perspectiva utópica do FALC, pode ser que também nos encaminhemos para aquilo que o Ocidente considera uma distopia, ao vislumbrar as estratégias econômicas, políticas e tecnológicas dos gigantes asiáticos.

Assim como já abordei aqui em outro post, estamos vivendo um conflito de metanarrativas agora reforçado por uma pandemia que traz o risco de vida sem distinção de classe social. E é esse o ponto do medo: nossa economia, à maneira que se seguia, também estava causando mortes, mas estas eram mortes por fome, por doenças advindas da falta de saneamento básico, segurança, desigualdade. Agora, com banqueiros falecendo devido à doença e a ordem generalizada de isolamento, a ameaça se tornou horizontal e, por isso, estamos vivenciando esse sentimento de luto generalizado. Em entrevista publicada na Harvard Business Review, David Kessler, co-autor do livro de Elisabeth Kübler-Ross sobre os estágios do luto, afirma que mais do que estarmos enlutados por um grande evento global (assim como ocorreu no 11/9), estamos vivendo um luto antecipatório: estamos sofrendo pelo que antecipamos do futuro e nada mais sintomático do momento que vivemos, em que ansiedade e depressão são transtornos que acometem a maioria da população (sendo que o Brasil lidera as estatísticas globais).

Então, assim como recomenda Kessler em sua entrevista, mais do que tentar antecipar o que pode vir a acontecer e apesar do meu trabalho como futuróloga, acredito que o momento pede uma solução menos "palestrinha" e mais humana, que muito tem a ver com a questão do luto. É comum que passemos pelas fases de negação, dúvida e aceitação durante o luto. É normal que tenhamos essa trajetória para entender que essa é, afinal, a realidade e que, de fato, nada será como antes — pro bem e pro mal (note que uso "e" e não "ou", portanto, vamos tentar deixar as dicotomias para trás, já que a realidade é muito mais complexa do que os cenários fictícios de distopia e utopia).

Mais do que nos cobrarmos em suprimir a tristeza, a raiva, a angústia, Kessler recomenda em sua entrevista que vivamos esses sentimentos, porque é isso que nosso corpo está demandando, e ao experienciarmos de forma ordenada, esses sentimentos virão e nos deixarão preparados para seguir em frente, independentemente do tamanho do desafio que possa nos surpreender a seguir.

Sobre a autora

Jornalista e pesquisadora em futurologia. Mestre em semiótica, doutoranda em artes visuais, palestrante, professora e escritora de ficção científica.

Sobre o blog

Artigos sobre os impactos das inovações tecnológicas na sociedade e na cultura com uma pitada de arte e ficção científica.