Estamos vivendo ou apenas fazendo lives?
Logo no início da quarentena, fomos lentamente nos adaptando a um momento inédito, para o qual não estávamos totalmente preparados. Impedidos de trabalhar fora de casa ou de sequer sair dela, nossa atenção ficou focada em ferramentas digitais que poderiam emular ou substituir certas atividades profissionais, compras ou mesmo para atender à demanda de socialização.
Nas redes sociais, não só novas opções de compra e formatos foram se somando ao longo desses três meses de isolamento social. E foi o marketing digital, em especial o marketing de influência, a ser desafiado a repensar suas estratégias de conteúdo — afinal, influenciadores de turismo, por exemplo, agora seriam impedidos de fazer conteúdo fora de casa, seja pelo isolamento social em si ou pela própria pressão crítica exercida pela audiência.
Ao longo da quarentena, muitos refletiram sobre o "cancelamento" de certos influenciadores e celebridades que ou furaram a quarentena ou então começaram a publicar conteúdos polêmicos. Gabriela Pugliesi foi apenas um dos casos. Junto à fila de stories surgiu a fila de lives, o YouTube passou a indexar transmissões ao vivo e o Zoom se tornou a principal ferramenta escolar e profissional, além de multiplicar lives ao se juntar à plataforma Sympla, que então sugeriu uma forma de monetizar esses conteúdos majoritariamente gratuitos. Para tentar pensar formas de monetização pelo conteúdo, o Instagram já começou a testar essa possibilidade há poucas semanas.
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É claro, quem já tinha uma carreira como influenciador continuou seguindo sua lógica de monetização com parcerias publicitárias, assim como os sertanejos bateram recordes de audiência e doações ao longo de seus shows ao vivo e transmitidos pelas redes sociais — mesmo quando alguns artistas passaram do limite no consumo de álcool (às vezes oferecido por uma marca patrocinadora) ou então quando disseram algo controverso. Diferentemente de um show com capacidade física, com um valor que pode delimitar a audiência, shows online são abertos para o mundo inteiro e podem ser facilmente gravados para a eternidade.
Porém, não foram só artistas e influenciadores que adotaram uma rotina de lives. Pessoas que não necessariamente possuíam esse foco profissional passaram a se arriscar mais em lives muitas vezes não planejadas, sem uma mensagem a ser passada, senão uma tentativa de gerar vendas. Isso não pegou muito bem. Como demonstra a pesquisa "Deus me Lives: intoxicação na quarentena", realizada pela coluna Futuro do Trabalho do Podcast Caos Corporativo, 12% dos respondentes reclamaram da "falta de preparo dos speakers", 17,3% criticaram a "falta de interatividade e da condição técnica inadequada" e 40,4% ainda se confessaram incomodados com o "conteúdo puramente comercial" das lives.
A mesma pesquisa também apontou que 80,3% dos entrevistados afirmaram se sentir "muito ansiosos" ou "ansiosos" durante a quarentena; 76% assumiram que "se sentem na obrigação de aproveitar o tempo ao máximo" — um número bastante contrastante quando se descobre que apenas 15,4% disseram estar aproveitando o isolamento para desacelerar.
Com a avalanche de cursos, conteúdos e serviços disponibilizados gratuitamente "por tempo limitado" (ou durante a quarentena que, por outro lado, ainda não tem tempo delimitado), o próprio movimento das marcas e dos influenciadores potencializou a ansiedade já decorrente das crises sanitária, econômica e política, para que assim corrêssemos e aproveitássemos essa chance única. Tal qual na Black Friday, em que os descontos são drásticos e as pessoas se atropelam para aproveitar as ofertas, estamos nos atropelando não em pessoas, mas contra o tempo e em nossa saúde física e mental.
Um novo estudo feito pela Flixed apontou que a quantidade de conteúdo consumido sobre a Covid-19 nas redes sociais aumentou em pelo menos 15 minutos por dia do que já era o hábito comum entre os norte-americanos. O reflexo disso, porém, é que quanto mais se usa as redes sociais, piores são os efeitos na saúde mental. Dentre os usuários do Reddit, a pesquisa notou que 57,6% dos respondentes afirmaram que tiveram uma piora em sua saúde mental. Pessoas que limitaram o consumo desse tipo de informação demonstraram estar com a saúde mental melhor, mas o próprio fato de impor um limite já é um desafio quando nos encontramos impedidos de sair de casa. Somos inevitavelmente atraídos pelas telas e, com a oferta de lives, conteúdos gratuitos e cursos disponibilizados, isso só torna a tentação (e a ansiedade) ainda maior. É algo particularmente preocupante quando lembramos que o Brasil foi considerado, em 2019, o país mais ansioso do mundo.
Ainda de acordo com a pesquisa "Deus me Lives", 42,3% dos entrevistados afirmaram que os conteúdos das lives "são irrelevantes, repetitivos e sem profundidade", e 38% concluíram que "não aguentam mais as lives" e acreditam que "as empresas só querem aproveitar o momento para se promover".
Mas então, por quê? Um artigo publicado pela YOUPIX no fim de maio afirma que a "live é um dos formatos que está possibilitando que as pessoas exerçam a necessidade básica de se expressar, de se comunicar e de se sentir pertencentes a uma comunidade. À medida que estamos isolados e impedidos de ter uma vida mais livre, estamos suprindo nossas necessidades de contato por meio desse formato. É a possibilidade de um ponto de encontro, onde se vê, celebra, e ouve os artistas e influenciadores de uma forma aproximada que em outros momentos não veríamos, como shows, por exemplo, que estão sendo de graça no momento da live". Contudo, fisiologicamente, não é assim que estamos reagindo e daí o surgimento do conceito da fadiga do Zoom.
Segundo a reportagem publicada aqui no TAB, escrita pela jornalista Luiza Pollo, sentir-se exausto depois de uma conversa por vídeo é normal e se intensifica conforme há mais participantes. Nosso cérebro, como afirma o psicólogo Ronald Fischer, entrevistado por Pollo, está programado para se atentar principalmente a pessoas e animais, então, mesmo que não percebamos, seguimos estimulados a prestar atenção nas expressões faciais e movimentos de todos os presentes na tela; olhar para todas essas pessoas pela tela dá a impressão de que estão todos te encarando de volta. Assim, de forma reduzida, o que podemos concluir é que a fadiga do Zoom nada mais é do que um excesso de informação simultânea demandando a atenção do nosso cérebro. Não faria sentido pensar que isso também se aplica às lives?
De acordo com o estudo da YOUPIX, não. Ao contrário das videoconferências, as lives, por serem mais "orgânicas" ou mesmo naturais, podem gerar uma dinâmica de relacionamento, proximidade e troca. Mas será que isso é válido para os dois lados? Criadores de conteúdo já possuem estratégias de como engajar, de em quais horários publicar, do tamanho de seus vídeos ou textos, do formato de suas fotos, dos conteúdos que podem ser relevantes. Porém, na live, mesmo que haja um planejamento ou um roteiro anterior, a audiência é quem dirige o andar da carruagem, como também defende a YOUPIX. Qual é o limite de cada um na hora de se adaptar, se desdobrar e não cair em armadilhas que podem acabar resultando em algum comentário polêmico ou negativo? Todo mundo erra, mas celebridades têm uma imagem a zelar e a internet não perdoa.
No Twitch, plataforma de streaming de vídeos, há até mesmo algumas diretrizes sobre como lidar com a saúde mental, a pressão exercida pela lógica da profissão e a depressão que pode advir desse esgotamento. Quando nos vemos "obrigados" a usar lives e nos dispor 24/7 na internet ao longo da quarentena como uma maneira de se manter uma presença online ativa, juntamos pelo menos três focos de ansiedade e pressão: o do isolamento social, o da exposição digital e falta de contato físico e a pressão profissional em se manter relevante e/ou complementar a renda.
Agora, se a busca por lives está na suposta naturalidade e espontaneidade do streamer, então o que dizer dos streamers especializados em fazer lives de atividades rotineiras como as refeições ou mesmo de quando estão dormindo? No Twitch, os streamers mais bem sucedidos e que são mais bem pagos só conquistaram esse posto por ficar o maior tempo online possível. No caso de um dos principais streamers de Fornite, Tyler "Ninja" Blevins, depois que ele ficou 48 horas offline, ele chegou a perder 40 mil inscritos em seu canal, o que leva o streamer a fazer uma maratona online, o que é uma prática comum na plataforma, mas não menos perigosa, que se baseia em fazer lives por dias seguidos em um esforço para atender a diferentes audiências, em diferentes fusos horários pelo maior tempo possível. E isso não é uma particularidade entre gamers: usuários do TikTok também já estão usando essa estratégia.
Ao longo dessa quarentena, sites de pornografia tiveram seu tráfego aumentado e também as cam girls estão tendo um aumento de acessos e de receita, o que não significa uma melhoria na saúde mental. Na verdade, em reportagem para a Vice, algumas cam girls disseram ter começado a transmitir mais de 17 horas do seu dia depois do início da quarentena e que a audiência tem pedido também para apenas conversar e não apenas performar atividades eróticas. Por que estou trazendo esses dados? Ainda que as lives nas redes sociais ou mesmo no Twitch não possuam conteúdo erótico, esse desejo por mais lives, por mais intimidade com influenciadores e celebridades, parece algo próximo do voyeurismo, com a exceção de que não há uma intenção sexual ali.
O que seria essa inclinação, então? Alguns sinônimos próximos seriam "exibicionismo", "vigilância", "vicário", "invasivo" ou mesmo algo como "stalkear". Assim, parece fazer sentido que impedidos de consumir outros formatos televisivos, como por exemplo as novelas, a audiência se voltou ao Big Brother convenientemente durante o isolamento social de modo a substituir a experiência concreta de festas, reuniões e entretenimento pelo que outras pessoas estavam vivendo enquanto também confinadas. Para o ex-BBB Pedro Falcão, o programa é o "Coliseu moderno", de modo que, na Antiguidade, o que valia era a relação vida e morte dos participantes, mas hoje o valor está no ego. "Ele é construído e destruído no mesmo programa. Desde que saí da casa, vi que muitos ex-participantes sofrem ou sofreram de depressão profunda."
Se estamos pedindo por mais intimidade, mais conteúdo, mais presença digital, como fica a saúde mental dos criadores de conteúdo? E aqui eu não falo apenas de influenciadores e celebridades que, por sua vez, possuem uma equipe dedicada a trabalhar nessa sua presença midiática. Estou falando de pessoas que não necessariamente desejam ser celebridades ou influenciadoras, mas que têm como trabalho a produção de conteúdo e a pesquisa, a educação. Quando vemos quadrinhos como o de cima, vemos que a sede por conteúdo e por prestação de serviço intelectual e informativo não leva em conta o trabalho, o histórico e a dedicação que se demanda para esse tipo de atividade e aí, por outro lado, temos uma desvalorização não apenas do profissional, mas também da pessoa por trás de sua atividade financeira. Estamos, novamente, cometendo o erro de querer trocar trabalho por divulgação.
Assim como animais de circo entravam em exaustão pelos treinos e pela demanda em entreter o público, o mesmo vale para os seres humanos — ou então o fenômeno "Britney careca" não teria acontecido. Sem previsão de encerramento da pandemia e do isolamento social, sem perspectiva de melhoras na política e na economia brasileira, não estamos particularmente em posição de demandar exposição e presença contínua das pessoas. Em Freud, encontramos o conceito de "transferência" como a busca por líderes e por pessoas de referência para nos guiarem e nos organizarem a partir de seus comportamentos em ideia. Quando nosso próprio ego está fragilizado e perdido, é comum tentarmos achar um "totem" para nos firmar, porém tudo isso faz parte de uma ilusão mantida pelo líder por seu narcisismo e por seus seguidores devido à sua dependência infantilizada. Mas esse é um outro assunto que pretendo trazer em uma próxima coluna.
O que quero deixar aqui é menos uma solução e mais uma provocação: o excesso de lives tem mais a ver com o quê? Oportunismo marqueteiro, demandas narcisistas ou uma crise generalizada na saúde mental? Se sua resposta for a última, então talvez seja melhor procurar por um psicólogo ou psiquiatra e não uma live sobre cristais curativos.
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