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Lidia Zuin

Em 'Bloodchild', Octavia Butler fala de direitos reprodutivos e amor alien

Lidia Zuin

26/02/2020 04h00

* Aviso: esse post contém spoilers da noveleta "Bloodchild", de Octavia Butler

Neste último dia 24, completamos 14 anos sem a escritora de ficção científica Octavia Butler: uma autora norte-americana que se tornou um ícone do gênero não apenas pelos prêmios conquistados, mas também pelos assuntos abordados em seus romances e noveletas. Um dos mais populares, "Kindred", fala sobre a viagem no tempo feita por uma mulher negra dos anos 1970 que se depara com uma época em que os Estados Unidos ainda compactuavam com a escravidão. Outro título relevante é a noveleta "Bloodchild", que reúne mais de quatro premiações, inclusive o Nebula e o Hugo – dois dos mais importantes da ficção científica.

Originalmente publicada na Isaac Asimov's Science Fiction Magazine em 1984, a noveleta descreve a estranha relação firmada entre seres humanos e extraterrestres com aparência de inseto. A história narra um futuro no qual os humanos teriam chegado a outro planeta, habitado pela raça Tlic, mas em um momento pós-assentamento, quando ambas as espécies decidem formar uma aliança de paz conforme os Tlic oferecem proteção em troca de um humano destinado a ser hospedeiro – então chamados N'Tlic.

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Esse universo é apresentado pelo personagem Gan, uma criança humana que teve seu destino selado antes mesmo de nascer. O garoto seria responsável por carregar os ovos de uma fêmea Tlic chamada T'Gatoi, a qual, por acaso, tornou-se amiga da família e próxima das crianças que entendem esse destino como um privilégio. Essa percepção, no entanto, é alterada quando Gan é surpreendido por uma emergência que T'Gatoi atende de um N'Tlic supostamente abandonado por sua Tlic. O que Gan presencia, portanto, é uma cesariana emergencial de um homem que estava sendo devorado pelas larvas que haviam sido chocadas dentro do seu próprio corpo.

Diante da imagem assustadora de ver um homem aberto ao meio e preenchido por larvas, Gan se sente ameaçado pelo seu destino, entendendo-o menos como um privilégio do que suicídio. Contudo, os laços firmados entre T'Gatoi e a criança fazem com que Gan entre em conflito: o afeto pela alienígena que precisa depositar seus ovos no corpo dele se mostra maior do que o temor diante da cena emeregencial. Gan entende que aquilo havia sido uma exceção e que, na realidade, o processo deveria ser muito mais calmo e até mesmo prazeroso para os humanos. Depois de engravidá-lo, T'Gatoi promete proteger e cuidar de Gan para sempre.

A noveleta é especialmente perturbadora por oscilar entre descrições de uma criatura completamente alienígena e, portanto, assustadora, e uma humanização advinda da maneira como esse ser se comunica com os humanos. Afinal, depois de um tempo de adaptação entre espécies, tornou-se algo normal ter humanos grávidos de larvas Tlic – mesmo o pai de Gan havia passado por isso mais de uma vez. Vale lembrar que, mesmo no caso de uma cesária de gravidez humana, nem todos são capazes de acompanhar o processo – em Portugal, por exemplo, a Ordem dos Médicos é contra a presença dos pais durante o procedimento, uma postura polêmica e que já inspirou petições online para contrariar a postura de alguns hospitais que mantêm a proibição. Dentro do horror, aliás, há também um específico subgênero que fala sobre os horrores da gravidez, sendo um dos títulos mais recentes sobre o assunto o filme "Antibirth" protagonizado por Natasha Lyonne.

Mas enquanto alguns críticos entenderam que a relação entre os Tlic e os humanos era algo relacionado à escravidão (mesmo por conta de outros títulos de Butler terem trazido esse tema à tona), a autora explicou em diferentes entrevistas e mesmo nas anotações posteriores à noveleta que não foi essa a intenção. Muito pelo contrário: a escritora queria, na realidade, especular de forma realista como se poderia dar a relação entre humanos e outras criaturas alienígenas. Essa é uma temática forte na ficção científica e que ficou latente em títulos como o videogame "Mass Effect", porém, mesmo ali os alienígenas mantêm algum tipo de proximidade com a anatomia humana (são bípedes e possuem dois braços). Através da literatura, Butler consegue criar descrições que conseguem se transformar em imagens mentais, mas que dificilmente chegam a um suporte físico com fidelidade e sem se contaminar por referências visuais de outras obras – por exemplo, a icônica anatomia criada por H.R. Giger para a franquia "Alien".

Assim, o propósito de Butler ao escrever "Bloodchild" teria, em primeira instância, uma relação com o medo que a autora desenvolveu ao pesquisar mais sobre um inseto parasita conhecido em inglês como "botfly". No português, poderíamos encontrar uma correlação com as moscas varejeiras ou outras espécies da família oestridae, sendo que apenas a mosca-berneira (Dermatobia hominis) tem maior chances de acabar parasitando no corpo humano. A autora tomou conhecimento desse inseto durante uma pesquisa sobre as espécies existentes na Amazônia peruana, destino para o qual ela viajou para pesquisar referências para sua trilogia de romances "Xenogenesis". E assim ela descreve, nos comentários posteriores à noveleta:

"A mosca-berneira deposita seus ovos em feridas deixadas pelas picadas feitas por outros insetos. Achei a ideia de uma larva vivendo e crescendo sob minha pele, comendo minha carne conforme ela crescia, tão intolerável, tão aterrorizante que eu não sabia como lidar se acontecesse comigo. Para tornar as coisas ainda piores, tudo que eu havia ouvido e lido sobre vítimas da mosca-berneira é que elas não deveriam tentar se livrar das larvas até voltarem para casa, nos Estados Unidos, e assim poderem ir a um médico – ou até que a mosca encerrasse sua fase larval no ciclo de crescimento, emergisse de seu hospedeiro e saísse voando.
O problema era que fazer o que deveria ser algo normal, esmagar a larva e jogá-la fora, era um convite para a infecção. A larva se torna literalmente parte de seu hospedeiro e deixa parte de si para trás caso ela seja esmagada ou removida. Claro, a parte deixada para trás morre e apodrece, causando infecção. Adorável."

Curiosamente, o que Butler comenta é que faz parte de sua personalidade escrever sobre aquilo que a perturba e, neste caso, a mosca-berneira foi o gatilho para o nascimento de "Bloodchild", bem como durante o colegial, quando o presidente Kennedy foi assassinado, a autora lembra que pegou seu caderno e começou a escrever suas respostas e reações ao noticiário. "Seja escrevendo páginas de um diário, um ensaio, um conto ou transformando meus problemas em um romance, eu entendo que escrever me ajuda a lidar com meus problemas e continuar com a minha vida. Escrever 'Bloodchild' não me fez gostar de moscas-berneiras, mas, por um tempo, fez com que eu as visse mais como interessantes do que horripilantes." E essa foi a intenção de Butler também durante a noveleta: apesar de descrever os Tlic de forma quase repulsiva, aos poucos, eles se tornam interessantes e representam um contexto no qual nós, como colonizadores, estaríamos "pagando o aluguel" para viver em um outro planeta.

Aqui Butler fala sobre colonização em outro sentido. Se, por vezes, replicamos a perspectiva do colonizador como o opressor que domina as espécie nativas do destino descoberto, em "Bloodchild", somos confrontados com a figura do colonizador que precisa se submeter aos nativos. Para Butler, um cenário como este, na realidade, não se pareceria com uma adaptação do Reino Unido no espaço ou com "Star Trek", mas precisaríamos fazer algum tipo de troca para sermos aceitos nesse novo ambiente – em "Bloodchild", a troca é tornar nosso corpo um receptáculo. Nesse sentido, um dos temas que mais ressaltam na noveleta é o que a crítica Jane Donawerth diagnostica como uma imposição da experiência feminina no narrador masculino: "nessa noveleta… o convencional narrador/herói adolescente é punido com estupro, incesto, exploração reprodutiva pela raça dominante, e a antecipação de um nascimento por cesária doloroso – e o qual ele deveria gostar, assim como se esperava de mulheres em muitas culturas de compactuar com sua opressão."

Para Donawerth, Gan se torna uma representação das mulheres negras durante o período de escravidão nos Estados Unidos, as quais foram "forçadas a carregar os filhos de uma raça alienígena." Já a pesquisadora Kristen Lillvis ainda argumenta que isso possa ser uma referência histórica à escravidão reprodutiva, na qual o narrador masculino precisa "acessar o poder do amor maternal" que advém de uma "tradicional autoridade maternal não-fálica que se desenvolveu das experiências das mulheres negras durante o período de escravidão" – isto é, a obrigação moral de as mulheres negras exploradas sexualmente de amarem seus filhos e absorverem seu papel materno, apesar de a maternidade ser proveniente do abuso.

Por outro lado, outras análises acreditam que essa visão é secundária na construção ficcional de Butler, sendo que o principal tema na relação entre Gan e T'Gatoi é justamente o sentimento que as duas espécies concebem entre si – em um primeiro momento, a alienígena trata Gan como um filho, mas depois este se torna o hospedeiro de seus ovos, portanto, seu parceiro sexual, o que Bollinger defende como sendo uma "simbiose maternal" e que controverte nossa moralidade humana ao sugerir uma relação incestuosa. Ao mesmo tempo também, a cena sexual entre ambos os personagens na qual a espécie feminina injeta seus ovos na espécie masculina traz um deslocamento da nossa lógica reprodutiva (do ponto de vista humano) ao esperar que a parte feminina seja responsável pela gestação da vida. Desse modo, "Bloodchild" não só traz uma visão sobre direitos reprodutivos como, inevitavelmente, acaba tratando de uma questão de gênero.

Essa mesma discussão também aparece na obra do filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser quando ele escreve o ensaio "A consumidora consumida" e assume formas geométricas como representantes do masculino e do feminino como indivíduos, mas também como sintomas da nossa cultura ocidental: a mulher seria uma forma côncava que serve como um receptáculo do homem representado pela forma convexa. Dentre suas reflexões, Flusser pensa em como a mulher absorve e acolhe o homem em seu corpo, gerando uma nova vida e, por conta dessa sua qualidade, acaba também sendo explorada – pelo consumismo e pelo machismo, por exemplo. A figura feminina, portanto, com suas características biológicas e sociais assume um nível simbólico no ensaio de Flusser, servindo como uma das possíveis conexões filosóficas com a noveleta de Butler. Isso já não poderia mais ser verdadeiro quando pensamos no cenário agênero criado por Ursula K. Le Guinn em "The Left Hand of Darkness", por exemplo, no qual gêneros só importam durante períodos reprodutivos e para essa mesma finalidade. Ou seja, mesmo ao tentar romper com os papeis de gênero, em "Bloodchild", ainda pensamos em uma configuração tradicional dos papeis de gênero e optamos pela inversão, mas não pela subversão.

Mas também podemos trabalhar Flusser nesse contexto quando pensamos em outro livro que o filósofo escreveu e que poderia se conectar não apenas com "Bloodchild", mas também a trilogia de romances "Xenogenesis" de Butler. Em "Vampyrotheutis infernalis", Flusser escreve em um gênero que ele próprio define como ficção filosófica ao combinar uma parte científica e descritiva com uma reflexão acerca da estranheza, mas ainda assim com pontos de contato, entre o ser humano e o molusco abissal que dá título à obra. Ao estabelecer comparações e discrepâncias, o autor faz questão de manter o molusco como um ser completamente alheio (e até mesmo curioso) para o observador humano. Butler, por sua vez, rompe com esse olhar zoológico para encontrar, ainda que controvertidamente, a sintaxe entre humano e outra criatura completamente alienígena, mas ainda assim possível de se sentir afeto.

Em Flusser, vemos a figura do Vampryotheutis sendo usada como uma metáfora para nossa relação entre nós mesmos enquanto em Butler, temos, de fato, a especulação sobre o contato alienígena, mas também um paralelo possível com a questão reprodutiva das mulheres negras durante o período da escravidão. Mas é curioso ver como enquanto Flusser critica em outro ensaio o nosso desejo por conhecer mais das estrelas quando pouco sabemos de nossos mares (o que é um desconhecido muito bem aproveitado por Lovecraft em seu horror cósmico), enquanto que a ficção científica e o horror muitas vezes acabam elegendo anatomias subaquáticas e abissais para representar o desconhecido que veio do espaço, mas que, possivelmente, já faz parte do nosso ecossistema e se esconde não nas trevas das galáxias, mas nas profundezas de nossos mares.

Assim como Butler, Flusser também escreveu "Vampyrotheutis infernalis" a partir de uma inquietação (afinal, filosofar não seria refletir a partir de uma inquietação?), mas enquanto o filósofo classifica o título como uma ficção filosófica, temos exemplos na ficção científica que funcionam mais como tratados filosóficos do que puro entretenimento. Esse é o caso de "Bloodchild" de Octavia Butler ou mesmo de outros títulos escritos por Ursula K. Le Guinn e demais autores como Arthur C. Clarke ou mesmo Philip K. Dick, dentre tantos outros nomes. Em outras palavras, o que quero propor, por fim, é que há muita filosofia, política e até mesmo economia (vide "The Moon is a Harsh Mistress", de Robert Heinlein) escondida nas criptografias das metáforas da ficção científica. Não é uma leitura fácil, é verdade, mas se é preciso "ter brio" para ler Kant, então por que não o ter ao ler Butler?

Sobre a autora

Jornalista e pesquisadora em futurologia. Mestre em semiótica, doutoranda em artes visuais, palestrante, professora e escritora de ficção científica.

Sobre o blog

Artigos sobre os impactos das inovações tecnológicas na sociedade e na cultura com uma pitada de arte e ficção científica.