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Lidia Zuin

Resistir é inútil: aos 100 anos, James Lovelock defende um futuro ciborgue

Lidia Zuin

15/02/2020 04h00

Nascido em 1919, James Lovelock tornou-se um homem centenário no ano passado, quando também lançou seu mais recente livro, "Novacene: The coming age of hyperintelligence". Na obra, o cientista inglês rememora sua longa trajetória, cheia da fatos impressionantes — entre os causos, lembra por exemplo que teria jantado na casa dos Hawking e carregado no colo o bebê Stephen. Mas isso, nem de longe, é o mais curioso fato sobre Lovelock. No momento em que discutimos a Quarta Revolução Industrial e o desenvolvimento acelerado das tecnologias exponenciais, é mais difícil dizer no que Lovelock não se envolveu em algum ponto de sua carreira do que o contrário.

Suas primeiras pesquisas com cientistas envolveram criopreservação de roedores com técnicas que, ao longo do tempo, se mostraram tão bem sucedidas que até hoje são usadas como referência no ramo da criogenia — cada vez mais voltada à preservação de corpos humanos, na expectativa de ser possível revivê-los anos à frente.

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Como inventor, Lovelock também desenvolveu um detector de captura de elétrons, um dos primeiros dispositivos a ser popularmente usado como forma de detectar gases CFC na atmosfera — e isso não teria só a ver com a questão da camada de ozônio, mas também com a possibilidade de verificar vida em outros planetas.

Mas foi durante seu período de trabalho na NASA, nos anos 1970, que Lovelock desenvolveu uma hipótese que reverberou durante os últimos anos, tanto em estudos acadêmicos sobre o futuro quanto na cultura pop. Foi assim que conheci o trabalho do inglês, quando pesquisei sobre o anime "Serial Experiments Lain" em 2009. A animação, lançada em 1998, fala sobre um futuro no qual as pessoas seriam capazes de se conectar diretamente à internet sem o uso de dispositivos. O que hoje vislumbramos com criações como o implante Neuralink de Elon Musk foi sugerido pelo anime, já em 1998, inclusive com sustentações tecnológicas e filosóficas.

Em um episódio específico da animação de apenas 13 capítulos, somos apresentados a uma série de ocorrências históricas misturadas com a ficção que nos leva a crer que, desde o incidente de Roswell, adquirimos conhecimento suficiente para nos desenvolver de forma tecnológica e científica, criando a internet e chegando a um ponto em que nos fundimos a ela. Entre referências aos estudos de Anton Wilson e Timothy Leary e à criação da internet, a animação de Ryutaro Nakamura chega à hipótese de Gaia de Lovelock, na qual o autor propõe que o planeta Terra não é apenas um corpo celeste, mas um organismo vivo: toda fauna e flora fazem parte desse grande corpo que leva o nome mitológico para nosso planeta.

Em Lain, sugere-se que a partir do momento em que criarmos nodos de conexão uns com os outros (no caso, a conexão pela internet), seremos capazes de criar uma espécie de rede neural de Gaia, e então a despertarmos para uma nova era — o que Lovelock chama de "Novacene", em seu mais recente livro. Este novo período, portanto, seria uma nova fase que superaria o que alguns autores chamam de Antropoceno, era iniciada com a invenção da tecnologia a vapor e que teria seu encerramento agora, trezentos anos depois, frente às tecnologias exponenciais.

O que muitos futuristas (ou futurólogos, como prefiro usar) chamam de Singularidade, Lovelock nomeia Novacene. Assim como no caso da Quarta Revolução Industrial proposta pelo Fórum Econômico Mundial, também estamos em um processo de transição para o Novacene. Como teremos certeza? Lovelock dá a dica:

"De certa forma, a seleção intencional já está acontecendo, o fator principal sendo a velocidade e a longevidade da Lei de Moore. Nós saberemos que estamos completamente no Novacene quando certas formas de vida que emergirem forem capazes de se reproduzir e corrigir seus erros de reprodução por seleção intencional. A vida no Novacene será então capaz de modificar o meio ambiente para se adaptar às suas necessidades químicas e físicas. Mas, nesse ínterim, uma significante parte do ambiente continuará tendo a vida como conhecemos hoje."

E o que seria essa nova vida para o autor? Lovelock defende o uso do termo ciborgue, no sentido de organismo cibernético, em contraponto à ideia de androide. Enquanto o último carrega a conotação de uma máquina com aspecto humano, Lovelock prefere usar a palavra ciborgue ao pé da letra, ao propor o surgimento de vidas sintéticas que não necessariamente terão um formato humanoide — na realidade, nem precisariam ter, mas nós as fazemos assim para uma melhor adaptação e absorção.

Independentemente disso, o que Lovelock sugere é que, com o tempo, humanos deixarão de existir e tudo bem: daremos espaço aos robôs, mas, durante esse processo, conviveremos e até nos beneficiaremos deles. Mais uma vez indo na contramão do imaginário da cultura pop, Lovelock não acredita que teremos um futuro ao estilo "Exterminador do Futuro", mas sim uma outra saída, inclusive, ambientalista.

O cientista também teve seu envolvimento com o ambientalismo quando, nos anos 2000, chegou até mesmo a propor um sistema de engenharia ambiental para restaurar algas capazes de consumir dióxido de carbono e devolver oxigênio à atmosfera. Essa é a premissa dos biorreatores que usam algas para purificar o ar, por exemplo, uma criação que vem sendo desenvolvida para solucionar o problema da poluição.

Por outro lado, Lovelock também é um firme advogado do uso de energia nuclear, em contraponto aos combustíveis fósseis. Desde sua proposta da hipótese de Gaia em 1970, ele vem defendendo várias possibilidades de ciência ambiental, mas no livro "Novacene", ele busca ser didático ao explicar que, sim, é verdade que tivemos momentos históricos como Chernobyl, Hiroshima e Nagasaki, ou mesmo o mais recente acidente em Fukushima. Mas, para ele, a energia nuclear segue sendo uma fonte virtualmente infinita de energia e que, com o devido estudo e cuidado, é possível obter resultados muito melhores do que o que temos hoje com biocombustíveis e combustíveis fósseis.

A ideia não é interessante, comercialmente interessante. Nas palavras de Lovelock, esse fator é extremamente importante quando pensamos em desenvolvimento tecnológico e os rumos da humanidade. Se a tecnologia do vapor não tivesse trazido lucro e vantagens econômicas, talvez sequer tivesse recebido apoio. É algo a se pensar em outros contextos de tecnologias atuais, também.

Agora, um dos momentos mais interessantes do livro é quando Lovelock faz uma excursão especulativa (porém cientificamente embasada) no que aconteceria à Terra se continuarmos com o mesmo comportamento predatório que mantemos nos últimos anos. No capítulo "The Heat Threat", ou o perigo do aquecimento, o autor propõe imaginar a mudança de temperatura dos oceanos em vez da temperatura relativa da Terra – afinal, oceanos cobrem a maior parte do nosso planeta. Caso as águas se aquecessem para além dos 15°C, nossos oceanos se tornariam um deserto ainda mais inóspito do que o Saara, porque nesse contexto, os nutrientes da superfície são rapidamente consumidos e os corpos mortos e seus detritos afundam para regiões mais profundas, onde haverá abundância de alimento que, no entanto, não retornará à superfície por conta de a região mais fria ser mais densa.

No caso de nossos oceanos aumentarem em temperatura para além dos 40°C, então a evaporação poderia intensificar o efeito estufa, já que o vapor d'água na atmosfera absorve a radiação infravermelha e previne o resfriamento da Terra ao espalhar calor pela superfície. Com mais evaporação, mais quente o ambiente, e quanto mais quente o ambiente, mais evaporação — é um círculo vicioso e que raramente é mencionado nas discussões sobre aquecimento global, indica Lovelock, ainda mais porque, mesmo no caso de combustíveis fósseis, sua queima não apenas libera dióxido de carbono, mas também vapor d'água.

Por fim, se chegarmos a uma temperatura média de 47°C na Terra (como já registrado em alguns locais nos últimos anos), Lovelock indica que poderíamos acabar entrando em um processo que nos encaminharia ao que Vênus se tornou: um planeta estéril. E por mais que a Terra, ao longo de sua vida, tenha se adaptado a catástrofes, o preço que pagaríamos é a extinção de toda a vida como conhecemos hoje. Podemos entender isso como um novo ciclo, mas se já temos problemas para aceitar a morte de um ente querido ou a nossa própria morte, imagine a extinção de todas as espécies? Antes de chegar a tal conclusão fatalista, Lovelock fala, por exemplo, como muitos acadêmicos e cientistas têm trabalhado na tentativa de aplicar seus conhecimentos para reverter esse quadro – um cenário muito mais interessante para o nosso presente que, em parte, se vê livre de grandes guerras e que poderia, por sua vez, dedicar-se a uma espécie de ativismo ambiental, pegando carona com pessoas como Greta Thunberg.

Mas, se a princípio, nossos herdeiros ciborgues passariam por um processo de separação assim como o bebê de sua mãe, rapidamente estes conquistariam sua autonomia e, para Lovelock, é evidente que eles não precisariam mais de nós para existir. A reflexão que o autor faz sobre isso provavelmente só é possível por conta da maturidade conquistada ao longo dos seus cem anos. Citando um verso de Ulysses, do poeta Tennyson, Lovelock conclui o livro "Novacene" dizendo que aquilo que somos, somos, e que com o conhecimento que acumulamos ao longo desses e dos próximos anos, devemos aprender a lidar melhor com a impermanência das coisas enquanto achamos consolo na memória daquilo que fizemos e do que ainda iremos fazer.

Por mais imprevisível que seja o futuro, o presente já dá dicas do porvir quando Lovelock comenta que já não conseguimos mais criar nossas máquinas e que cada vez mais precisamos delas para poder continuar avançando tecnologicamente. Pense nos processadores atuais – suas partes são tão pequenas que nenhuma mão humana consegue manipular. Nesse sentido, é inevitável pensar que "ciborgues irão conceber ciborgues" e, nesse ciclo, fica difícil imaginar que eles continuarão querendo ser uma espécie subserviente – não para se vingar de seus pais, mas sim para ascender enquanto indivíduos. Quando Lovelock fala do futuro de Gaia povoada apenas por seres maquínicos, o autor não fala com o rancor psicanalítico de vingança aos genitores, mas sim como um passo natural e desprovido de sentimentos que apenas a natureza, em seu estado livre de símbolos e sentimentos, talvez consiga assumir. Nós, enquanto seres simbólicos, continuaremos tentando nos fundir às máquinas como forma de permanecer relevantes, como defende Elon Musk, mas para Lovelock, do alto dos seus 100 anos e da varanda de sua casa de praia no sul da Inglaterra, a resistir é inútil.

Sobre a autora

Jornalista e pesquisadora em futurologia. Mestre em semiótica, doutoranda em artes visuais, palestrante, professora e escritora de ficção científica.

Sobre o blog

Artigos sobre os impactos das inovações tecnológicas na sociedade e na cultura com uma pitada de arte e ficção científica.