Por que ícones da música pop andaram tretando sobre fascismo tecnológico?
Há duas semanas, uma nova polêmica nasceu no Twitter, dessa vez entre as cantoras Zola Jesus e Grimes. Tudo começou com os comentários de Grimes em um episódio do podcast "Mindscape", em que trouxe sua perspectiva a respeito do futuro da música e do uso da inteligência artificial nessa indústria. Para Grimes, que inclusive está trabalhando no desenvolvimento de um avatar artificialmente inteligente para atuar em sua substituição nas redes, a arte humana pode logo se tornar "obsoleta". Pode ser que, na verdade, sequer exista arte humana no futuro, porque, para ela, a arte produzida pela IA é muito mais perfeita do que aquela que podemos criar como humanos.
Zola Jesus não gostou. Além de trazer esse questionamento sobre o futuro da música, a artista mencionou em seu Twitter o fato de Grimes usar em sua bio a expressão "fairy futurism", ou futurismo das fadas. Jesus ficou incomodada em relação ao uso do termo futurismo, e trouxe, como referência, um texto de apoio explicando o que foi a vanguarda artística do século 20 que recebeu esse nome, que teve como um de seus expoentes o poeta Filippo Marinetti. Apesar de o movimento contar com outras vozes e manifestos que se diferenciaram ao longo das quase duas décadas de efervescência, a memória do futurismo ficou marcada pelo fato de Marinetti ter se aliado a Benito Mussolini. O italiano identificou as premissas e ideias do futurismo no discurso do líder político.
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Segundo Vanessa Bortulucce, historiadora da arte especializada em futurismo italiano, essa identificação ocorreu porque tanto Marinetti quanto Mussolini defendiam valores como a coragem, a audácia, a atração pelo perigo, a ousadia e a autoconfiança do indivíduo. No entanto, essa convergência se deu por diferentes origens e propósitos. "No caso da vanguarda italiana, tratava-se de uma poética propositalmente agressiva, pois os artistas estavam fortemente engajados na proposta de inserir a Itália no contexto da modernidade internacional. Era necessário desvincular o país de seu passado clássico, antigo, considerado por eles como arcaico, velho e retrógrado", explica a pesquisadora.
Quando lemos o "Manifesto Futurista" publicado por Marinetti em 1909, deparamos, justamente, com a narração de um acidente de trânsito que o poeta sofreu no começo do século passado. Em suas palavras:
"Mal tinha pronunciado essas palavras, quando virei bruscamente sobre mim mesmo, com a mesma embriaguez insensata dos cães que querem morder a cauda, e eis que de repente vejo dois ciclistas que vêm ao meu encontro, titubeando como dois raciocínios, ambos persuasivos, apesar de contraditórios. Seu estúpido dilema discutia sobre o meu terreno… Que chateação! Arre!… Cortei o assunto, e, de desgosto, atirei-me de rodas para cima num fosso… Oh! fosso materno, quase cheio de água barrenta! Lindo fosso de oficina! Eu saboreei avidamente tua lama fortificante, que me lembrou a santa mama preta de minha ama sudanesa… Quando me levantei — trapo sujo e malcheiroso — debaixo do carro virado, senti o coração perpassado, deliciosamente, pelo ferro incandescente da alegria!"
E logo após essa passagem, somos apresentados aos onze "mandamentos" do futurismo, nos quais são exaltados, justamente, a velocidade, o amor ao perigo, a rebelião e mesmo a glorificação da guerra, "única higiene do mundo", como descreveu Marinetti. Em seu nono mandamento, o manifesto futurista indica que "o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desespero pela mulher" deveriam ser reforçados. Não é à toa, portanto, que os futuristas se identificaram com os ideais de Mussolini quando este defendia a entrada da Itália na Primeira Guerra Mundial ou quando valorizava o indivíduo provocador e audaz.
No entanto, como ressalta Bortulucce, alguns ideais de Mussolini eram contraditórios: ao mesmo tempo que ele desejava uma Itália moderna, ele também defendia a refundação de um Império nos moldes dos Césares, uma perspectiva que não se alinhava ao desejo futurista de romper com o passado e viver pelo futuro. Com o tempo, inclusive, Marinetti e Mussolini se afastaram por perceberem que, afinal, não estavam falando da mesma coisa. "Acredito que o futurismo e o fascismo nunca foram assim tão próximos para se confundir uma coisa com a outra", explica Bortulucce.
Futurismo ou futurologia?
É nesse sentido que Rose Eveleth, da revista Wired, encaminha sua reflexão acerca dos novos futuristas que, no entanto, raramente trazem em pauta a questão da vanguarda modernista, justamente por conta dessa questão histórica entre Marinetti e o fascismo italiano. Os futuristas atuais, representados por nomes como Ray Kurzweil, Peter Diamandis ou mesmo Elon Musk, são especialistas em estratégia, consultores de inovação ou, por vezes, também escritores de ficção científica. "Futuristas focam principalmente na tecnologia e o campo hoje está completamente conectado aos tecnólogos trabalhando em tudo, desde inteligência artificial a CRISPR", escreve Eveleth. Escolas como a Aerolito, que oferece cursos sobre futurismo do estilo de "Friends of Tomorrow", definem o futurismo como uma "disciplina que estuda, explora, traduz e acelera as possibilidades de um futuro pós-emergente. A ideia é observar como a ciência, a tecnologia e o empreendedorismo/mundo dos negócios podem afetar a cultura, os novos comportamentos e as novas estruturas da sociedade, ajudando-a, assim, a tomar melhores decisões no presente."
Também, dentro do campo maior do Future Studies ou estudos do futuro, existem outras disciplinas como o coolhunting (pesquisa de tendências), forecasting, pesquisa de mercado ou mesmo a ficção científica e a futurologia ou futurismo. Alguns autores não vêem diferença entre o termo futurismo e futurologia — apesar de a futurologia ter sido um campo de estudos criado pelo pesquisador Ossip K. Flechtheim, em meados dos anos 1940, que "aborda o destino da humanidade, o futuro da sociedade e o amanhã da cultura. Ela lida não apenas com a perspectiva de evolução biológica e psicológica, mas também com uma vasta gama de futuras atividades culturais".
A futurologia, portanto, foi uma tentativa de categorizar e criar metodologias que consolidassem uma tendência natural do ser humano de pensar e imaginar o futuro, de forma mais estratégica e crítica. Afinal, como defende o historiador Yuval Noah Harari, o ser humano é uma criatura que conta histórias e, diferentemente de outras espécies animais, somos os únicos capazes de pensar no futuro de maneira abstrata e fictícia como fazemos a partir das narrativas que criamos, sejam elas obras de arte, filosofias ou religiões. Elaborar uma forma mais científica, objetiva ou mesmo estratégica de pensar no futuro é um dos interesses da futurologia.
Uma das possíveis linhas do tempo da futurologia poderia ser inaugurada com a obra "A República" de Platão, na qual o filósofo imagina uma sociedade perfeita que, bem mais adiante, em 1516, inspira também a obra "Utopia" de Thomas More. A isso se segue a publicação da revista "Scientific American", em 1845, em que se aliam a pesquisa científica à especulação de implicações no futuro, e então as narrativas de ficção científica como as de Júlio Verne em 1860 e H.G. Wells em 1901. Curiosamente, Wells ainda publicou na revista "The Fortnightly Review" o ensaio "Anticipations of the Reaction of Mechanical and Scientific Progress Upon Human Life and Thought", em que propõe a fundação de uma "ciência do futuro". Com a popularização do conhecimento científico em linguagem mais amigável aos leigos (na revista "Popular Science", do final do século 19), o mundo também se encaminhou para um momento perpassado pelas Revoluções Industriais, tornando a vida mais entremeada por tecnologia. Pensar o futuro tecnológico, portanto, era uma nova demanda dos tempos modernos e a fundação de organizações como a World Futures Studies Federation, em 1967, apenas dava vazão à chegada de autores como Alvin Toffler e seu seminal livro "Future Shock".
Assim, o futurismo atual, de fato, possui alguns pontos de encontro com o futurismo do século 20 quando pensamos na questão da disrupção e da inovação tecnológica promovida por ambos os movimentos. Contudo, há também outros valores controversos que se repetem em ambos os casos, como diagnostica Eveleth: algumas figuras notáveis da tecnologia e do Vale do Silício, de fato, também repudiam o passado e querem ignorá-lo para construir o futuro no qual acreditam.
A jornalista menciona uma citação de Anthony Levandowski, co-fundador da Waymo, braço de desenvolvimento de carros autônomos do Google, na qual ele diz: "A única coisa que importa é o futuro. Eu nem sei por que estudamos história. É divertido, eu acho — os dinossauros e os homens de Neanderthal, a Revolução Industrial, coisas do tipo. Mas o que já aconteceu não importa de verdade. Você não precisa saber a história para criar a partir do que já foi feito. Na tecnologia, tudo que importa é o amanhã". Eveleth, então, resgata um trecho do Manifesto Futurista, no qual Marinetti faz o mesmo questionamento: "Por que deveríamos olhar para trás, quando o que queremos é arrombar as portas misteriosas do Impossível?". Segundo a autora, enquanto Marinetti dizia que "nós estamos no último promontório dos séculos!", hoje os tecnólogos dizem "o futuro é agora".
"Os futuristas italianos eram hipnotizados por carros e aviões, os tecnólogos de hoje estão babando por foguetes e viagem espacial. Enquanto Marinetti acreditava que mulheres eram muito afeminadas para promover o tipo de progresso rápido que ele desejava, o ex-funcionário do Google James Damore escreve como a desigualdade de gênero na tecnologia existe porque homens e mulheres são 'biologicamente diferentes'."
E é a partir desse tipo de problematização que Zola Jesus tece seu argumento, mais bem explorado em um texto publicado em seu Patreon. Em sua troca de tuítes com a cantora Grimes, Jesus acusou a canadense de ser uma voz do "silicon fascist privilege", ou "privilégio fascista do Vale do Silício", o que diz respeito à lógica das empresas de tecnologia. Como descreve a cantora,
"Os trabalhos em tecnologia estão crescendo exponencialmente a cada ano. Frequentemente estão em locais com altos salários, alta velocidade e ambição que sustentam inovação, evolução, crescimento e trabalho incansável. Muitos desses trabalhos estão contribuindo com tecnologias que ainda nem são implementáveis. Realmente trabalho pioneiro. Isso fomenta um certo tipo de clima na indústria. As pessoas que trabalham no Vale do Silício, ou que estão imersas no mundo da tecnologia, são frequentemente bem pagas e isoladas de uma forma que as protegem em diferentes classes. Elas são idealistas por natureza sobre as premissas e o futuro da tecnologia. Há uma ênfase no idealismo visionário, ao glorificar tecnologias atuais e futuras como disruptivas e capazes de mudar nossas vidas. Todos querem ser a próxima Apple ou Facebook. Todos eles querem um lugar na história ao contribuir por um Amanhã Melhor"
O fato de Grimes ter um relacionamento com Elon Musk só reforça ainda mais a crítica de Jesus. Desde 2017, o casal tem feito aparições públicas sem, no entanto, oficializar à imprensa um possível compromisso. De lá para cá, houve polêmicas envolvendo a cantora Azealia Banks e a participação de Grimes como um holograma no lançamento do Cybertruck da Tesla. A cantora também lançou recentemente um single junto a HANA para a música "We appreciate power", em que a letra apresenta um pensamento de elogio à velocidade, à tecnologia, à transição do ser humano para uma outra condição, o transumanismo. Mas a que custo?, questiona Zola Jesus:
"Esse encantamento utópico pelo futuro me faz pensar no Futurismo italiano. O futurismo foi um movimento na Itália do século 20 que rapidamente se tornou a face do fascismo. E hoje, parece que temos uma certa reprise, conforme enfatizamos a inovação como algo inevitável. Nós sonhamos como a IA irá tomar conta de nossas vidas, mesmo que gostemos disso ou não. Falamos sobre como ela irá nos mostrar beleza e excelência até então desconhecidas ao homem. Ela promete a transformação da humanidade em uma espécie iluminada e fundida, na qual nossa consciência irá se misturar com nossas máquinas e, juntas, todo o conhecimento irá fluir e desembocar em uma espiral de perfeição. É incrível. Quando o amanhã chegar, nossas vidas nunca mais serão as mesmas."
Na música de Grimes e HANA, pensamentos semelhantes aparecem quando as cantoras anunciam: "Nós apreciamos poder. Eu vou me afastar da raça humana colocando maquiagem no meu rosto. (…) As pessoas gostam de dizer que nós somos insanos, mas a IA irá nos recompensar quando ela reinar. Prometa aliança ao computador mais poderoso do mundo. A simulação é o futuro. (…) E se você gostaria de nunca morrer, querido, conecte-se, faça o upload de sua mente. Ora, você nem está vivo se você não tem um backup no drive. (…) Neanderthal a ser humano, evolução, mate o gene, a biologia é superficial, a inteligência é artificial: renda-se."
Tecnofascismo x Tecnoutopia
No livro "A Religião das Máquinas", o pesquisador Erick Felinto descreveu, já em 2005, um panorama sobre o imaginário da cibercultura, identificando dois possíveis perfis: o tecnofílico e o tecnofóbico.
Felinto lembra que máquinas e tecnologias sempre foram objeto de fascínio, mas também de temor. No fim dos anos 1950, Gilbert Simondon já identificava a tecnofobia como parte da nossa cultura (ao menos a ocidental). Segundo o filósofo da técnica, "a cultura apresenta uma atitude ambivalente em relação aos objetos técnicos: por um lado, os enxerga de forma neutra, como simples reunião de matéria inanimada e sem significação; por outro, os toma como seres inteligentes imbuídos de intenções hostis para com a espécie humana". Disto, a figura do robô é a mais rápida analogia que pode ser feita e, a partir dela, também se pode pensar em um terceiro perfil, uma atitude geralmente presente entre aqueles que possuem conhecimento tecnológico e que, na realidade, são entusiastas. Felinto traz, portanto, duas implicações inspiradas pela reflexão de Simondon: há, na cultura, um "impulso religioso de transcendência" relacionado à tecnologia e uma ideia de utopia e enlevo com relação às máquinas. Nas palavras do pesquisador:
"Entre as utopias dos tecnófilos, destaca-se uma que pode ser encarada como síntese máxima de todas as outras. Trata-se da ideia da máquina suprema, capaz de estar em toda parte, conjugando, automatizando processos e reunindo informações. Relegando a ideia ao campo da pura fantasia, como no caso do robô, Simondon a descreve com as seguintes palavras: 'Ultrapassando tudo o que a experiência mostra, eles [os tecnoutopistas] supõem que por meio de um crescimento e aperfeiçoamento do automatismo, poderia-se reunir e interconectar todas as máquinas entre elas, de modo a construir uma máquina de todas as máquinas'."
Mais do que dizer respeito à internet, a reflexão de Simondon nos leva à ideia da singularidade tecnológica, o momento em que o poder de processamento de uma máquina superaria o cérebro humano e no qual também nós, como espécie, nos tornaríamos parte máquina. Curiosamente, essa visão pode tanto ser de fascínio como de horror: é como a descrição romântica de Marinetti sobre seu acidente de carro que, no entanto, foi capaz de imprimir nele a experiência da velocidade e da tecnologia — ou, talvez não necessariamente, a visão hollywoodiana de um futuro ao estilo "Exterminador do Futuro". Quando Zola Jesus fala de um suposto tecnofascismo, ela convida a refletir sobre os problemas do encantamento pela técnica, mas não necessariamente o repúdio completo. É por isso que Jesus cita exemplos negativos de como tecnologias são usadas para prender minorias étnicas, ou como algoritmos são usados para "vencer eleições", como foi o caso Facebook-Cambridge Analytica. No entanto, seria possível de se usar o termo fascismo nesse contexto contemporâneo?
A historiadora Vanessa Bortulucce explica que o fascismo é um termo que se afirmou na década de 1920, na Itália, e que surgiu com a fundação do Partido Nacional Fascista em 1919. "De forma literal, considerando a história do termo, não estaríamos vivendo um fascismo propriamente dito, mas estamos, sim, passando por tendências fascizantes. O termo tornou-se corrente para descrever qualquer situação que assinale o risco às liberdades coletivas e individuais", argumenta ela. Se, por um lado, Zola Jesus ironiza o fato de que ela própria usa serviços e tecnologias criadas por empresas do Vale do Silício, Bortulucce também ressalta essa controvérsia e defende que o uso do termo fascismo nesse contexto é um exagero: "O termo está anêmico. As pessoas o utilizam sem saber o mínimo sobre ele".
Assim, Bortulucce acredita que, enquanto o futurismo, como vanguarda artística, trata de uma poética da modernidade, ele não possui correlação com os debates atuais e as confusões decorrentes da falta total de estudo e informação da história da cultura e das ideias da Itália. "É de fundamental importância deixar claro que a vanguarda italiana foi fundada em 1909 por Marinetti e tinha caráter originalmente literário. Este poeta, advogado, correspondente de guerra e empresário era fascinado pelas máquinas, pelo automóvel, pela turba urbana, pela coragem do indivíduo. Essa poética marinettiana vinha para contrastar com uma Itália que, no período, era vista como um túmulo cultural marcado pelo Coliseu, pela Monalisa, pelas ruínas romanas. Essa Itália era considerada obsoleta por Marinetti, enquanto Paris era considerada o grande referencial moderno", discorre a pesquisadora. "O que partilhamos com os futuristas italianos é uma certa angústia, existente desde a Antiguidade e muito forte a partir da Revolução Industrial: como conviver com os artefatos que nós mesmos produzimos? As máquinas podem melhorar nossa vida? São nossas amigas ou inimigas?"
A historiadora acredita que é importante que estudemos a vanguarda italiana justamente para visualizar um histórico das relações homem-máquina ou homem-tecnologia. Contudo, é ainda mais urgente que se separe o futurismo artístico das compreensões contemporâneas do termo e não usar o futurismo como um repositório de generalidades e lugares comuns.
O que há de futurismo artístico no futurismo atual
De fato, alguns pensamentos contemporâneos defendidos por autores como Ray Kurzweil, ou mesmo Nick Bostrom e Martine Rothblatt, são ideias que já apareceram no futurismo artístico, porém não necessariamente no de Marinetti. Em "Vida simultânea futurista", manifesto de Fedele Azari escrito em 1927 e traduzido por Vanessa Bortulucce em 2010, somos apresentados à relação entre a velocidade, o dinamismo e a simultaneidade na vida do homem do futuro. Em 1927, portanto, vemos como a ideia do automóvel sugerida por Marinetti se amplifica em um conceito mais amplo, como uma forma de vivência. Conforme descreve a pesquisadora:
"A identificação do homem com as máquinas estreita-se cada vez mais, uma vez que ele é senhor de si e delas, pois já habituado a conviver com todas as outras espécies de vida, abraça agora uma nova espécie, a máquina, da qual é criador e amigo. A espécie humana não sofrerá uma desvalorização; coexistirá harmoniosamente com a máquina, aprenderá com ela a ser mais eficiente, determinará seu destino mecânico, possibilitará uma sociedade melhor adaptada às demandas de um novo tempo. O homem é, antes de mais nada, homo faber: atua e altera as configurações de sua existência, instaura novos padrões de vida"
Quando Azari fala da máquina como uma agente multiplicadora da vida humana, não se trata apenas da criação de uma vida multitarefas, como a que vivemos hoje, mas também a possibilidade de a tecnologia e das máquinas prolongarem nossas vidas. Nas palavras de Bortulucce, Azari vê que, com a chegada dessas máquinas, "o tempo poderá ser usado de um modo mais racional, uma vez que poderão ser criadas máquinas para proporcionar ao homem a realização de atividades simultâneas: se o tempo gasto para comer, dormir e fazer a higiene é um desperdício, tais seres mecânicos — tal como a Máquina de Alimentação da qual Carlitos torna-se cobaia no filme "Tempos Modernos" — poderão tornar tudo mais eficiente, permitindo ao homem dedicar-se ao que realmente interessa".
De fato, o que vemos é o surgimento de aplicações que automatizam tarefas e substituem funções no mercado de trabalho que são maquínicas ou dispendiosas demais para serem praticadas por humanos, então disponíveis para tarefas mais criativas e críticas, que são funções ainda não possíveis de serem realizadas pela inteligência artificial em seu estado atual. Desse modo, o que Azari propunha no fim de 1920 é muito parecido com o que Elon Musk propõe hoje quando diz que só permaneceremos relevantes como espécie se nos fundirmos com a inteligência artificial — daí o lançamento da Neuralink. No entanto, antes mesmo disso, Zygmunt Bauman já falava da modernidade líquida ou pós-modernidade como um momento de ruptura com as certezas do passado para uma liquidez que, afinal de contas, não tem se mostrado libertadora, mas sim esmagadora, ao nos tornar reféns do caos da multiplicidade de escolhas. Segundo Bauman ou mesmo Paul Virilio, a tecnologia e sua velocidade não nos amplifica como espécie, mas demonstra um resultado positivo ao tornar a economia mais produtiva e a vida (e, em especial, a saúde mental) humana mais precária.
Isso porque, ao mesmo tempo em que o futurismo artístico e o modus operandi tecnológico atual falam sobre um desejo de produtividade e inovação, o que vemos é que, apesar de as tecnologias terem aumentado a produção e eficiência da indústria, ela não possibilitou um aumento proporcional ao rendimento do trabalhador, como demonstra pesquisa feita pela VOX (gráfico acima). E com a perspectiva de desenvolvimento e absorção do mercado das chamadas tecnologias exponenciais (inteligência artificial, biotecnologia, nanotecnologia, blockchain, tecnologias imersivas e internet das coisas), também se tem em vista a chegada de uma nova Revolução Industrial, intitulada quarta e reconhecida por instituições como o Fórum Econômico Mundial. O que vivemos, portanto, é um momento de intervalo entre o fim de uma era para o começo de outra – daí o termo "interregno" usado por Bauman em um artigo publicado em 2012, em que o sociólogo também cita Gramsci:
"Em algum momento no fim da década de 1920 e começo da década de 1913 no século passado, Antonio Gramsci escreveu em um dos seus vários cadernos preenchidos durante seu longo tempo de encarceramento na prisão de Turi: "A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e novo não pode nascer; nesse interregnum, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem."
Do mesmo modo que os futuristas italianos vivenciaram o início do século XX como período de consolidação da Segunda Revolução Industrial e um "interregnum" até a terceira ou então chamada Revolução Digital, também nós vivemos esse intervalo no qual consolidamos este último momento tecnológico para adentrar em uma Quarta Revolução Industrial. Fica ainda mais latente, portanto, o chamado de Bortulucce para que estudemos o futurismo artístico e entendamos as ideias ali discutidas na arte e que, por um momento, se entremearam à política do fascismo, de modo que esse tipo de desvio não aconteça novamente na atualidade. É um grande perigo, visto movimentos como o aceleracionismo e o anarco-capitalismo crescem como uma perspectiva sobre esse presente-futuro tecnológico, com algumas ideias problemáticas e já visitadas pelo olhar da esquerda política.
De um ponto de vista mais concreto, temos também a China como um exemplo de país que saiu da condição de uma nação em estado de emergência e fome para a segunda maior economia em apenas quarenta anos, destes mais recentes caracterizados por soluções altamente tecnológicas que, no entanto, não necessariamente passam por um crivo ético antes de pensar na eficiência e na funcionalidade de um país que gera tensão ao recobrar a posse de Hong Kong e, portanto, a abrangência de seu sistema. É fato que os níveis de segurança e a economia avançaram no país e que soluções tecnológicas ajudaram a China a superar problemas que vão desde a crise ecológica até a financeira, mas ao mesmo tempo vemos o surgimento de campos de concentração preenchidos com base em escolhas algorítmicas.
Em suma, quando Zola Jesus critica Grimes e sua euforia tecnoutópica, a cantora, na realidade, promove um momento de pausa para uma reflexão mais racional que, por outro lado, faz parte da agenda de Grimes conforme a cantora respondeu aos tweets em seu perfil pessoal concordando e corroborando com as críticas feitas por Zola. Porém, persona artística e pessoa privada se misturam em discursos que promovem um elogio à técnica sem necessariamente beirar à crítica ou à ironia, o que nos põe em um outro contexto cultural e profundamente complexo que vem sendo chamado de metamodernismo, mas esse assunto fica para um próximo artigo.
Como conclusão, porém, do ponto de vista de nomenclatura, talvez seja importante que o futurismo contemporâneo se torne mais consciente de seu homônimo artístico e não o ignore em seu posicionamento – seja para mencionar o caso Marinetti-Mussolini ou para prolongar o discurso já iniciado na vanguarda. Caso contrário, faria mais sentido deixar o nome ao movimento artístico e adotar, preferencialmente, o termo futurologia como um campo de estudos do futuro – afinal, "logia" como sufixo significa, justamente, futuro, enquanto que o "ismo" de futurismo pode beirar à ideia de dogma ou fenômeno linguístico, sistema político, religião ou ideologia, por exemplo.
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