Sergio Moro faz 'crime e castigo' no Admirável Brasil Novo
Certa vez, em livro de mesmo nome, o escritor russo Fiódor Dostoiévski se dedicou à análise das relações entre o crime e o castigo, então descobrindo-os como parte pertencente a uma estrutura mais ampla da sociedade, responsável por impor limites às relações sociais. Dostoiévski afirmou, então, que "[…] não se faz nada sem forças, e essas forças, é preciso conquistá-las à força". Sendo assim, como a conquista da força, do poder, tem relação com o crime? E com o castigo? Quais são as premissas que delimitam os âmbitos da vida social e que oferecem critérios legais para vigiar e punir?
No dia 4 de fevereiro de 2019, Sérgio Moro, atual ministro da Justiça e Segurança Pública, apresentou um projeto que propõe mudanças no código de lei penal, com o qual seria possível alterar as aplicações e execuções vigentes. Os principais objetivos desse projeto são os de promover a segurança do país e reduzir as taxas de corrupção e de crimes organizados. Para isso, o projeto prevê aumentar a efetividade do tribunal de júri, bem como também realizar a prisão de condenados de segunda instância, o que é uma medida que assegura o cumprimento da pena, uma vez que ela é expedida pelo julgamento.
Moro também sugere o início de uma força-tarefa para o mapeamento genético de condenados como uma forma de alimentar um banco de dados já existente no país, mas que pode ser ainda mais complementado e explorado, caso haja investimento e foco nesse tipo de abordagem capaz de resolver crimes e rastrear culpados. Segundo o 8º Relatório da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG), em junho de 2018, o banco contava com dez mil amostras de DNA de suspeitos de crimes em território brasileiro, sendo que 6.800 destes vestígios já vinham sendo coletados desde 2014. No entanto, apesar desses dados, somente dez decisões judiciais foram tomadas a partir dessa base, como relata reportagem na Revista Cult. E, mesmo assim, o projeto de Moro tampouco sugere um tipo de abordagem para melhor aproveitamento desses dados já coletados.
Tais propostas agradam a promotores, policiais e juízes. Mas trabalhadores sociais, advogados e especialistas em código penal, bem como em tecnologia, têm se posicionado criticamente contra o projeto devido ao seu potencial de um aumento considerável da população carcerária, bem como o risco de eliminar a presunção da inocência dos indivíduos. Em outras palavras, a proposta não foi pensada de modo a potencializar mudanças efetivas em como o sistema penal funciona, mas sim excluir e isolar indivíduos considerados indesejáveis ao desenvolvimento imperante de uma sociedade que já se encontra desestruturada.
Ademais, no que diz respeito à coleta dos dados genéticos de presidiários, tais fontes são tão complexas e profundas que são capazes de não apenas identificar um indivíduo como também descobrir possíveis doenças genéticas, paternidade, como outros traços mais ou menos precisos sobre longevidade, que, se analisados pelas mentes ou algoritmos errados, podem acabar levando a conclusões pseudocientíficas tal como observadas na época do regime nazista.
Durante muito tempo, os lancinantes experimentos realizados pelo médico Josef Mengele, membro do partido de Adolf Hitler, deram uma impressão deformada da medicina nazi. Essa medicina não foi mero sadismo, ainda que responsável por muito sofrimento. Melhorar a "raça ariana" significava muito mais que a eliminação de uma "raça" inferior ou de uma eugenia que proporciona uma justificação racial para se livrar de pessoas consideradas inferiores. Era também uma ampla pesquisa de saúde pública que identificava, cientificamente, padrões e divergências que justificavam, para eles, as suas práticas genocidas. Os cientistas alemães foram, por exemplo, os primeiros que relacionaram o fumo ao câncer, e só chegaram a essa conclusão recolhendo dados genéticos forçosamente. Por outro lado, essas informações também conduziam a matanças como o programa T4, que ocasionou a morte de quase 70 mil pessoas entre setembro de 1939 e 1941, fundamentadas como uma ferramenta científica para a eliminação dos considerados "indesejáveis".
Os dados científicos recolhidos pelos nazistas por meio de experimentos cruéis foram utilizados posteriormente por entidades governamentais, científicas e acadêmicas de diversos países, e raramente a utilização desses dados foi questionada como desumana ou ilegal. O acesso aos dados proporcionados na sequenciação do DNA de prisioneiros no Brasil não fica reservado apenas ao período em que o indivíduo permanecer encarcerado: seus dados genéticos ainda continuarão sendo propriedade do Estado até 20 anos após o cumprimento de sua pena. Depois desse período, a pessoa está autorizada a solicitar a remoção desses dados do banco governamental. Se isso será fácil ou não, não podemos dizer hoje.
Da mesma forma que os crimes variam com o tempo, também as circunstâncias sociais oscilam. O mesmo vale para os valores da sociedade no que diz respeito à moralidade e à punição. Em um momento de mudanças representativas, tanto no âmbito social como político, como é este em que o Brasil se encontra, alterações penais parecem mais do que justificáveis como uma estratégia de adequação de interesses. O projeto anticrime do ministro, portanto, afirma o papel do Estado como guardião e símbolo da consciência coletiva, o que significa que qualquer reação negativa ao Estado significa um atentado à moralidade coletiva. No projeto de Moro, o crime é entendido como uma reação psicológica coletiva, em uma violação de valores comunitários. A sua resposta de mudança no código de lei penal se trata de um pedido de vingança da sociedade, que precisa se sentir mais equilibrada em casos de uma agressão contra seus valores. Dar imunidade aos policiais que agem de forma violenta em caso de conflito armado ou suposto conflito armado, portanto, é uma chancela para que o Estado exerça sua força de forma desproporcional e sem consequências.
Se, por um lado, a identificação de indivíduos através de seu perfil genético já era viabilizada pela Lei 12.654/2012, este tipo de metodologia só era requisitada em casos de crimes hediondos e dolosos que envolvesse violência grave contra a pessoa. No caso da proposta de Moro, qualquer pessoa condenada por crime doloso, ainda que não em trânsito em julgado, já seria submetida à coleta compulsória de material genético. Fora isso, a Lei do Perfil Genético originalmente dita que o material genético deve ser usado apenas para a identificação de um indivíduo em termos de genética de gênero, e que deve seguir as normas constitucionais e internacionais sobre direitos humanos, genoma humano e dados genéticos. Isso significa que esses dados devem ser usados em sigilo e com a finalidade de identificação do agressor e nada que relacione seu perfil genético a um possível tipo de comportamento.
Assim, se por um lado tal estratégia promete uma maior eficiência na resolução de crimes a partir da formação de uma biblioteca genética, esse tipo de informação é extremamente específico e profundo, ao ponto de requerer uma proteção diferente ao que se está acostumado corriqueiramente. A informação genética faz, inclusive, parte da Lei Geral de Proteção de Dados, sendo ela considerada um dos dados pessoais mais sensíveis, já que revelam muito da composição biológica e da própria personalidade do indivíduo. Na Europa, a LGPD dá ao cidadão a possibilidade de escolher compartilhar esses dados ou não, assim tornando o consentimento uma decisão expressa para o uso dessas informações.
Unindo esse tipo de input de informações ao processamento de grandes quantidades de dados não estruturados, como é o caso do big data, é possível que certas iniciativas priorizem o uso de programas preditivos que, no entanto, já demonstram vieses em seus algoritmos e erros que reforçam preconceitos e opressões já visíveis, mesmo fora do contexto tecnológico. De acordo com análise publicada no site JOTA, "se um algoritmo específico tiver acesso a essa base de dados, poderá se utilizar de informações como etnia, sexo, possibilidade de ter doenças e até origem dos ascendentes para todos os fins, inclusive para discriminar aquela pessoa. Isso sem contar o fato de que, até o presente momento, não se tem como mapear nem a utilização futura que poderá ser atribuída a dados genéticos nem o alcance do poder preditivo que deles podem resultar". Isto é, se durante o regime nazista, o desejo de melhora da "raça" através da medicina se converteu na esterilização dos "incapazes" e na eliminação dos indivíduos considerados incuravelmente doentes, conduzindo a Alemanha à um genocídio étnico, corremos o risco de passar pela mesma ameaça que, no entanto, ganha tons de eugenia misturados à ficção científica de obras como os filmes "Gattaca" e "Minority Report".
Ainda segundo artigo publicado no JOTA, tornar a coleta de dados genéticos um procedimento compulsório para condenados significa um problema de invasão que demanda responsabilidades talvez ainda nem consideradas pelos relatores. A administração de um banco de dados com esse tipo de informação requer muito mais cuidados no que diz respeito à concessão das autoridades públicas que poderão usar esses dados, como eles poderão ser coletados e utilizados, bem como as condições de autorização de acesso e o próprio procedimento de remoção desses dados da base, quando completado o tempo previsto.
E, indo além da condição do condenado, o receio que fica nesse tipo de procedimento é que o uso indevido de dados pessoais sensíveis acabe ganhando amplitude ao considerar que o Governo Federal também está caminhando para a criação de uma base de dados unificada, a qual terá todas as informações de seus cidadãos conforme indica a edição da Lei 13.444/2017, a que instituiu o Cadastro Único. Em outras palavras, mesmo que um indivíduo não tenha sido condenado, mas algum de seus ascendentes e descendentes possam vir a passar pelo sistema judicial, significa que pelo menos uma parte de seus dados genéticos poderão ser retirados desse quebra-cabeça hereditário que é o nosso DNA.
Apesar de esse tipo de decisão não ser algo exclusivo ao contexto brasileiro (afinal, os Estados Unidos gradativamente vêm coletando os dados genéticos de sua população carcerária desde 1994), o que ocorre é que vivemos num momento em que a ampliação da tecnologia e a digitalização dos sistemas nos fez chegar a um ponto em que a própria Lei Geral de Proteção de Dados considere nosso DNA também como dados a serem armazenados e controlados, como senhas de cartão de crédito ou registros de identidade. Nesse sentido, diferente dos anos 1990, temos muito mais ferramentas legislativas que preveem os riscos e consequências de vazamento desses dados no âmbito do nosso sistema democrático e nos nossos direitos à privacidade.
A maneira como nossa sociedade moderna se estrutura tem uma conexão complexa e fundacional em como desenvolvemos nossas atividades econômicas. Estas interferem diretamente no resto da nossa vida social, afinal, todas as nossas atividades sociais, políticas e culturais geram direta ou indiretamente movimentos econômicos. O que observamos é que a economia, na esfera da atividade social, sempre ocupará lugar preponderante em qualquer sociedade. Grupos dominantes neste âmbito serão aqueles capazes de impor seu poder e ditar as relações sociais que regem o funcionamento desses poderes econômicos. Do ponto de vista da sociologia durkheimiana, as instituições legais, políticas, morais, filosóficas e religiosas adotam as formas e valores que respondem ao modo dominante de produção, assim influenciando as condições de vida que permeiam os tecidos sociais. Todos esses atores na sociedade fazem que os mecanismos desenvolvidos pelo Estado sejam cumpridos através da moralidade coletiva.
É desse ponto de vista que encontramos os conceitos de estrutura e superestrutura em relação ao crime e o castigo que Rusche e Kirchheimer, posteriormente, argumentaram de acordo com a teoria de Marx sobre a arquitetura social, que baseia na ideia de que o nível econômico é a fundação sobre a qual se constrói a "superestrutura" das relações política e ideológica. Em seu ensaio de 1933, George Rusche afirmou que "[…] o direito penal e o trabalho diário dos tribunais são conduzidos exclusivamente contra aqueles aos quais a sua classe, pobreza, deficit de educação ou falta de moral fez com que realizassem um determinado delito". Em outras palavras, o que o autor defende é que a própria lógica do sistema judiciário é a de punir aqueles que, devido às suas próprias condições de vida, são levados a cometer um crime e a serem castigados em um círculo vicioso que, mais do que corrigir uma falha no funcionamento, apenas acaba protegendo os interesses da classe dominante.
Portanto, quando vemos as propostas do Projeto Anticrime de Moro, somos novamente convidados a repensar nosso papel como indivíduos na sociedade. Se, por um lado, defensores dos direitos humanos acabaram ganhando um estigma de defensores de criminosos para a oposição, o que ocorre é que se perdeu a noção de que as próprias instituições de poder não estão jogando o jogo para beneficiar a sociedade, mas sim para manter na posição de dominância àqueles que já estão neste posto.
Quando se prega a prisão de um indivíduo em segunda instância, não falamos apenas do agravamento estatístico da população carcerária brasileira (uma das maiores do mundo, segundo o último censo do IBGE), mas também numa lógica punitiva que desequilibra as regras de funcionamento de uma sociedade para a manutenção de sua desestruturação representada pela manutenção das dominâncias. Quando vemos iniciativas de mapeamento genético coercitivo aos condenados, não falamos apenas de gerar dados para a resolução de crimes e de um sistema de vigilância baseado em informações genéticas, mas na quebra da integridade e da privacidade do indivíduo apenas como um instrumento de coerção de poder do Estado que, por sua vez, sequer demonstrou efetividade no uso desses dados já colhidos desde 2014. Ele talvez não esteja necessariamente pronto para lidar com dados tão sensíveis.
Entre o desconhecimento tecnológico e a ignorância filosófica, seguimos um caminho em que as instituições brasileiras, como peças de um tabuleiro de xadrez, se organizam em uma jogada que ruma ao xeque-mate de nossos direitos e liberdades sem, no entanto, entregar de volta uma metanarrativa funcional e que garanta segurança e felicidade às pessoas. Não estamos entrando em homeostase com a edição das leis e propostas ainda mais profundas em nosso código penal, mas nos encaminhando para um desequilíbrio ainda maior entre aqueles que são punidos por crimes que sequer cometeram, mas que, porventura, respondam a um algoritmo programado para perfilar um DNA potencialmente criminoso. Se George Orwell falava da polícia do pensamento, Moro pode estar falando de uma polícia genética.
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Esse texto foi escrito em parceria com Laura Del Vecchio Lança. Laura é editora na Envisioning como definição social. Filósofa como profissão errante.
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