Topo

Lidia Zuin

Explorando o futuro a partir da música eletrônica

Lidia Zuin

03/06/2019 07h02

Antes mesmo de começarmos a associar a música eletrônica a um gênero destinado às pistas de dança, ela se desenvolveu em sua origem primeiro como uma linguagem musical calcada em equipamentos tecnológicos, os quais já eram explorados no final do século 19, como apresentado por Paulo Beto em seu prefácio para a edição do livro "Kraftwerk Publikation", uma biografia da banda alemã Kraftwerk.

Muitas vezes referenciados como os "pais" da música eletrônica, a verdade é que a banda fundada em 1969 sucede vários outros artistas que já estavam explorando não apenas a automação da música por meio do sequenciador (como foi o caso dos piano rolls do século 19 ou ainda, muito antes, com os persas do século 9), mas também a possibilidade de fazer som e inserir ruídos provocados por equipamentos tecnológicos à criação musical.

Como descreve Beto, um dos primeiros instrumentos musicais eletrônicos, o Telharmonium, foi criado em 1897 por Thaddeus Cahill. A premissa do instrumento era levar música popular à casa das pessoas por meio de ligações telefônicas pelas quais ele transmitia concertos com hora marcada — algo como o tataravô do Spotify e outros serviços de streaming musical. No entanto, o instrumento era tão grande e caro quanto os primeiros computadores: pesava mais de 2000 toneladas e custava cerca de US$ 200 mil.

Mais tarde, entre 1919 e 1922, fomos apresentados ao Theremin, que foi criado pelo violoncelista e engenheiro eletrônico russo Lev Sergeivitch Termen, o qual ficou conhecido na França como Léon Theremin — daí o nome do instrumento que tem como característica a variação sonora a partir da proximidade das mãos do músico diante de suas antenas.

Era um primeiro momento e um primeiro vislumbre das experimentações que se dariam nas décadas seguintes, conforme mais instrumentos e composições musicais eram desenvolvidos e experimentados. Em 1920, já se passava entre os músicos o período da exploração do serialismo dodecafônico até chegarmos no serialismo integral no começo dos anos 40, "cuja ideia baseada na matemática de permutação previa uma forma nova de ordenar as notas, a intensidade, a duração e o timbre dos sons", como explica Beto em seu texto.

Com o desenvolvimento tecnológico das máquinas eletrônicas, também aumentavam os horizontes de exploração dos sons reproduzidos por estas. Por um lado, a manipulação dos sons naturais, isto é, "sons musicais ou não presentes na natureza e passíveis de serem captados por microfones e registrados em fita magnética", gerou a música concreta na França. Por outro, na Alemanha, nesse mesmo período, desenvolvia-se uma manipulação sonora a partir de fontes de sons eletrônicos criados na época da Segunda Guerra Mundial. "Os osciladores de frequência e também os filtros — equipamentos de modificação do timbre — selecionavam qual parte das frequências sonoras se queria ouvir, alterando e distorcendo o som de forma inédita. Essa foi a origem da chamada elektronische Musik, que também ficou conhecida como música eletrônica pura", descreve Beto.

Diante desses novos gêneros musicais também surgia a importância de se criar um laboratório para experimentações e registros que, no caso, viria a ser o espaço do estúdio. Beto comenta em seu texto que, mais do que explorar diferentes sonoridades, também era importante criar ferramentas e técnicas de gravação desses sons, daí sendo a música eletrônica um gênero que inovou tanto na materialidade quanto no modus operandi de se fazer música.

Contudo, estúdios pediam por grandes investimentos que só eram possíveis de serem sustentados por governos, o que significa que seria necessário uma boa justificativa para se continuar dispendendo fundos. Como cada governo deveria possuir sua rádio para se comunicar com o povo, também eram necessários estúdios com equipamentos básicos de radiodifusão. Convenientemente, esses aparelhos não só serviam para a transmissão dos programas oficiais como também eram usados por artistas para testar novas sonoridades e, com isso, formou-se uma parceria em que os músicos também contribuíam com os programas governamentais criando sua sonoplastia.

Junto aos estúdios que foram sendo abertos pela Europa, também foram criadas oficinas de pesquisa sonora nas quais diferentes compositores eruditos como John Cage e Stockhausen chegaram a trabalhar. A importância desses estudos, então, transbordou as ondas do rádio para chegar ao cinema e à recém-criada televisão. Um dos exemplos trazidos por Beto é a série "Doctor Who", que teve seus efeitos e trilha criados no BBC Radiophonic Workshop e assinada pelo compositor australiano Ron Grainer junto a Delia Derbyshire, que ficou responsável pelos ruídos da série de ficção científica de 1963. Foi nesse mesmo ano também que, no Japão, Matsuo Ohno criou os efeitos sonoros do desenho animado "Astroboy", de Osamu Tezuka, a partir da manipulação eletrônica do som.

Já no cinema, a sonoridade peculiar da música eletrônica chamou a atenção de diretores de obras de ficção científica e suspense, como foi o caso de Alfred Hichcock: tanto "Spellbound" (1945) quanto "The Birds" (1963) contaram com efeitos e trilhas sonoras com instrumentos como o Theremin ou ainda o Trautonium para gerar uma ambiência sonora que emulasse passagens de delírio, tensão ou mesmo de terror. Antes ainda, porém, o filme "Forbidden Planet", de 1959, faria história com a primeira trilha sonora do cinema a ser produzida apenas com instrumentos eletrônicos.

Mas, apesar de a música eletrônica ter se ampliado para outros nichos que incluíam conteúdos infantis e mesmo publicidade, ela nunca abandonou esse seu aspecto curioso e ligado ao fantástico e à ficção científica. Com a chegada dos sequenciadores de som e dos sintetizadores, ao fim dos anos 1960, foi a vez de músicos eruditos se aproveitarem da interface de teclas do piano para experimentar composições clássicas em instrumentos não convencionais. Um dos primeiros a fazer isso foi Walter Carlos, mais tarde renomeada Wendy Carlos após sua transição, que gravou composições de Bach com um modelo de sintetizador da primeira geração e, assim, conquistou o posto de um dos discos de música erudita mais vendidos da história.

Foi Wendy também quem colaborou com a criação da ambiência futurista e bizarra do longa "Clockwork Orange" ("Laranja Mecânica"), de 1971, e "The Shining" (O Iluminado), de 1980, antes de sonorizar o clássico da ficção científica "Tron", em 1982. À essa altura, o Kraftwerk já estava ganhando popularidade em todo o mundo, inclusive no Brasil, como recorda Beto. Muitos, como o próprio autor, tiveram seu primeiro contato com a música eletrônica por conta da expansão da banda alemã e sua peculiar estética de emulação do que seria um robô: disciplinado, eficiente, preciso.

Depois de uma primeira fase em que os músicos "bangueavam" seus cabelos compridos sobre os sintetizadores, a banda adotou um outro estilo que eternizaria sua imagem inspirada pelo movimento artístico supremacista ao adotar a paleta de cores vermelho, preto e branco, bem como um figurino específico em que todos os integrantes possuíam um mesmo corte de cabelo, vestiam camisa e gravata. Entre o fim dos anos 70 e começo dos 80, eles lançavam álbuns com títulos que iam direto ao ponto: "The Man-Machine" e "Computer World".

Apesar de seu aspecto rígido, a banda nunca deixou de experimentar com seus sons e até improvisar durante seus shows. Como parte da tour do álbum "Computer World", os músicos passaram a fazer performances em que eram substituídos por manequins que funcionavam como suas réplicas — algo que mantêm até os dias atuais como parte de seus shows. Foi nessa mesma época que outros artistas seguiram os passos dos alemães alimentando essa vertente da música eletrônica na qual a Kraftwerk se inseria: o synthpop ou technopop, isto é, a música pop sintética, tecnológica. Músicos como Gary Numan e bandas como The Human League, Depeche Mode e outros mostravam como a Inglaterra se tornava esse novo expoente da música eletrônica popular — algo curioso, já que Alemanha e Inglaterra permaneceram inimigos durante muito tempo.

Nesse mesmo período, porém, com um aspecto mais experimental, ruidoso e obscuro, o subgênero da eletrônica industrial também se desenvolvia nesses mesmos países: Einstürzende Neubauten na Alemanha, e Throbbing Gristle na Inglaterra. Fazendo sons com serras elétricas, carrinhos de supermercado e protagonizando performances polêmicas que envolviam sangue e demais resíduos, essas bandas traduziam o humor punk da época à música eletrônica. Niilista, obscura, barulhenta e revoltada, a música industrial era politizada e controversa tanto quanto a ficção científica de Philip K Dick e, mais tarde, com os cyberpunks.

Nos anos 80, com a chegada dos belgas da Front 242, a música industrial ganhou um ritmo mais dançante e popular, o que deu origem a um outro subgênero dentro do próprio industrial, que seria o EBM ou Electronic Body Music. Vestidos com um figurino militar e futurista, os músicos abriam alas para a chegada dos cybergoths e de bandas de aggrotech que pipocaram por todo o mundo, inclusive na América Latina, em especial no México. Lá, particularmente, as bandas Hocico e Amduscia são especialmente interessadas em temas tecnológicos e transhumanistas.

Também o synthpop ganhou um primo ainda mais futurista, o futurepop, no qual encontramos bandas que se dedicam ao tema espacial e se alimentam de uma versão retrofuturista da ficção científica dos anos 50, isto é, muita roupa prateada, alienígenas e viagens espaciais. Em outros casos, como o da dupla vienense Mind.in.a.box, apesar de se enveredar entre o synthpop e o futurepop, trata-se de uma banda que criou, de fato, um universo narrativo que é apresentado ao longo de seus álbuns com personagens que ganham vozes diferentes a partir da manipulação da voz de um único cantor.

Desse modo, depois de a música eletrônica ter se tornado trilha sonora de filmes de ficção científica, foi nos anos 1980 que ela, na realidade, se tornou uma inspiração para novos subgêneros da FC, como é o caso do cyberpunk. De acordo com o escritor de ficção científica Bruce Sterling, o cyberpunk tinha como principais referências estéticas a cultura popular dos anos 80, a qual era composta por videoclipes de bandas de rock, a subcultura hacker, a tecnologia das ruas traduzida no hip hop e na scratch music, além do rock de sintetizador das bandas de Londres e Tóquio.

No artigo "Dead Channel Surfing", a pesquisadora Karen Collins traz em pauta, justamente, como o termo cyberpunk muitas vezes foi usado menos para leitura e para os filmes do que para se tratar de algum tipo de música. Esta poderia variar entre uma composição de hip hop ou punk, mas foi especialmente o subgênero da música eletrônica, o industrial, que abraçou essa nomenclatura de música cyberpunk por conta de sua forte conexão com a estética e as premissas do cyberpunk.

Foi no fim dos anos 80 e começo dos anos 90 que esse paralelo se deu a partir de publicações como a fanzine "Mondo 2000", da qual R.U. Sirius era editor. Este, aliás, chegou até mesmo a se aventurar no universo musical lançando o álbum "IOU Babe" em 1994 pela gravadora de Trent Reznor, vocalista da banda Nine Inch Nails. O mesmo também vale para o escritor John Shirley, um dos primeiros a escrever cyberpunk junto ao coletivo Movimento, como ficou conhecido o grupo de autores composto por Bruce Sterling, William Gibson, John Shirley, Lewis Shiner, Rudy Rucker e Pat Cadigan.

Fora isso, as homenagens transitavam de ambos os lados, conforme William Gibson lançava o romance "Idoru" em 1996 e intitulava um capítulo como "Collapse of New Buildings", que traduz para o inglês o nome da banda alemã Einstürzende Neubauten (colapso de novas construções). Já no caso da Front 242, a música "Neurodancer" faz alusão direta ao romance de Gibson "Neuromancer", publicado em 1984.

Além dessas trocas, Collins também mapeou em sua pesquisa de doutorado, "The Future is Happening Already': Industrial Music, Dystopia, and the Aesthetic of the Machine" (2002), a presença majoritária de samples (amostras de som) de trechos de filmes de ficção científica com relação a outras amostras de outras fontes, como filmes de terror, drama ou mesmo publicidade. Como uma música feita de colagens e referências, o industrial tem exemplos de como bandas usaram trechos de diálogos de filmes cyberpunk como "Blade Runner", "Matrix" ou ainda "Scanner Darkly". Foi pensando nisso que, em 2011, cheguei a fazer um setlist exemplificando músicas que usam samples de filmes de ficção científica.

Adicionalmente, Collins também identificou que dentre as mensagens compartilhadas pela música industrial e pelo cyberpunk estava a reflexão sobre a tecnologia tanto como um meio de libertação como sendo capaz de escravizar, a ascensão da tecnologia e sua relação com a humanidade, bem como um humor obscuro e pessimista sobre esse futuro. Em alguns casos, canções de música industrial não apenas possuem melodias dramáticas, amostras de filmes e ruídos de bombas ou tiros. No caso da música "Kathy's Song" da banda Apoptygma Berzerk, por exemplo, a ideia é iniciar a composição com uma declamação de um trecho da Bíblia na qual Deus cria o mundo, o homem e, então, o homem cria a máquina, a máquina que faria música.

Bandas de retrowave e synthwave também exploram a relação entre a ficção científica e a música eletrônica a partir de uma perspectiva retrofuturista, isto é, como o futuro era visto nos anos 80.

Essa é uma alegoria bastante presente na música industrial, especialmente a partir da premissa estilística da banda Kraftwerk. Conforme comentamos, os alemães se substituem até hoje com manequins nos palcos de suas apresentações e seu ritmo "disciplinado" tende a fazer essa comparação com uma atividade robótica, apesar de entremear experimentações e improvisos às suas músicas. Isso é interessante porque, nessa mesma época, também Andy Warhol, nos Estados Unidos, tentava copiar a máquina, como descreveu Christopher Phillips em 1997, a partir de suas serigrafias. A ideia era criar imagens repetidas de forma mecânica, idêntica e perfeita, mas seus principais críticos nunca deixaram de vislumbrar um traço de humanidade em suas obras. Para Phillips, essa abordagem de Warhol nada mais era do que uma reflexão e manifesto do medo da morte e da vontade de ser como uma máquina para, assim, viver para sempre.

Esse é um tipo de discussão que, por acaso, aparece na ficção científica e também na música industrial. Para Collins, estabelecer essa comparação entre o gênero musical e o literário faz com que se reconheça, principalmente, quais são os fatores ideológicos por trás dessas obras e como estas se encontram em suas similaridades. De acordo com sua pesquisa, é possível afirmar que é exatamente nesse humor pessimista e ansioso diante da tecnologia que a música industrial e o cyberpunk questionam um futuro de alienação ou desumanização como uma crítica que, em última instância, teria suas raízes no Dadaísmo e, mais tarde, em Burroughs.

Em suas palavras, "parece que o compartilhamento desses fluxos de ideias entre os dois gêneros, os quais fazem referência entre si, seus autores ou artistas são sutilmente direcionando seus leitores e ouvintes a outra forma de expressão cultural que pode ser apreciada ou com a qual podem se identificar, e com o que os artistas e artistas consideram ser relevante ou relacionado ao seu trabalho. Por exemplo, os vários fãs desinformados de música que forem atraídos pela música industrial podem também ser atraídos pelos personagens marginalizados dos romances e, consequentemente, compartilhar de um mesmo humor que é expressado pela música."

Isto é, essas trocas e conexões entre música e literatura, no fim das contas, possibilitam que o indivíduo amplie suas visões não apenas ideológicas, mas também sobre como visualizar o futuro e compreender suas questões tecnológicas de forma mais palatável, artística e criativa, uma vez que tanto a música quanto a literatura, o cinema ou mesmo os games já preparam um ambiente de experiências com o qual os fãs podem vivenciar "memórias de futuro", o que significa ter um primeiro contato com um conceito ou possibilidade de evento a partir da especulação e da ambiência das obras.

Por fim, como consequência óbvia para um gênero musical que se desenvolveu junto à inovação tecnológica, também está na mira da música eletrônica a exploração de tecnologias exponenciais com a inteligência artificial. Servindo-se tal qual um sucessor dos sequenciadores, o algoritmo capaz de criar música generativa torna ainda mais interessante e próxima a discussão que Aldous Huxley iniciou em 1924, quando em "Admirável Mundo Novo" falava de uma música sintética feita por máquinas e não por pessoas.

Mas hoje, cada vez mais pensamos como, na realidade, é menos interessante de se criar uma dicotomia que separa homem de máquina do que pensar estratégias para que ambos trabalhem juntos e se complementem – é a lógica do Centauro proposta pelo enxadrista Garry Kasparov. Presente desde seu início, a automação na música eletrônica sempre foi uma aliada e não uma inimiga, o que nos põe de frente a novas perspectivas de cooperação entre homem e máquina na música, como já visto com a canção "Neural", criada em parceria com o Spotify, que nada mais é uma análise das músicas do rapper Sabotage para se compor uma nova melodia que foi vocalizada por Negra Li, Família Sabotage e RZO.

Também lá fora já há outros experimentos, o que tem se posto em xeque se, mais uma vez, o modus operandi de se fazer música será modificado com a chegada de uma nova tecnologia tão revolucionária quanto foram os instrumentos elétricos e o sintetizador, mas que agora diz mais respeito à intervenção criativa do que o resultado sonoro manipulado pelo artista. Em contrapartida, nos celulares já é possível de se baixar aplicativos como o Endel, Mubert e Hear que são capazes de gerar música indefinidamente a partir de configurações iniciais de estilo e gênero musical, por exemplo.

A escolha, agora, ganha um novo jogador: junto às rádios, podcasts e plataformas de streaming musical, também temos aplicativos de música generativa infinita, algo que parece fazer sentido quando pensamos na popularidade crescente de vídeos e gêneros como o lo-fi, que deslanchou por conta de um streaming 24/7 no YouTube.

Sobre a autora

Jornalista e pesquisadora em futurologia. Mestre em semiótica, doutoranda em artes visuais, palestrante, professora e escritora de ficção científica.

Sobre o blog

Artigos sobre os impactos das inovações tecnológicas na sociedade e na cultura com uma pitada de arte e ficção científica.