Topo

Lidia Zuin

O filme "Divino Amor" encena êxtase religioso futurista

Lidia Zuin

24/06/2019 15h43

Foi no fim de maio que o primeiro trailer do filme "Divino Amor" começou a ser divulgado nas redes sociais. Com sua estética atraente e moderna embalada ao som de música eletrônica, o mais novo filme de Gabriel Mascaro ("Boi Neon", 2015) chama a atenção por trazer elementos do contemporâneo tecnológico para pensar um Brasil do futuro próximo. Como uma ficção científica soft, isto é, que está mais preocupada com os embates políticos, culturais e filosóficos do que com propostas tecnológicas, o longa que teve estreia antecipada para o dia 27 de junho vislumbra o Brasil de 2027, quando a grande maioria da população é evangélica, e a maior festa nacional não é mais o Carnaval, mas sim a Festa do Amor Supremo, uma celebração religiosa com música eletrônica e cantos de louvor.

A trama é protagonizada pela atriz Dira Paes, que interpreta a personagem Joana, uma funcionária de cartório responsável por protocolar divórcios. Apesar de ocupar um posto que carrega a responsabilidade da "fé pública", Joana encontra brechas na burocracia kafkiana que ainda existe no Brasil para aplicar sua fé religiosa. Curiosamente, apesar dos artefatos tecnológicos demonstrados no filme e a crescente digitalização dos sistemas já vigente hoje, o Brasil de 2027 ainda é uma burocracia fascinada pelo papel impresso e pela assinatura de próprio punho. Mascaro brinca com isso ao inserir cenas quase cômicas, se não fossem trágicas, por justamente refletirem a inflexibilidade ilógica da burocracia quando uma personagem não tem seu documento protocolado porque não o assinou na frente de Joana.

Mas mais do que dificultar a vida dos cidadãos com burocracia, na verdade, Joana se utiliza de seu cargo para tentar convencer casais a não se separarem, então fortalecendo o valor da família cristã de acordo com os preceitos do evangelismo. Joana é missionária em seu objetivo de fortalecer os laços de amor entre casais a ponto de fazer parte de uma espécie de seita chamada Divino Amor, na qual a devota entrega seu próprio corpo como objeto de sustentação da fé. É nesse sentido que o filme polemiza ao trazer erotismo não como método para quebrar paradigmas, mas sim para fortalecer valores cristãos e tradicionais, como é o da família – daí a importância de levar casais em crise para as reuniões e rituais.

O filme já começa com uma sequência alucinante de cores neon típicas da fotografia de Mascaro, sendo que desta vez o diretor nos convida a mergulhar na ritualística de estilo Alejandro Jodorowsky no filme "A Montanha" durante a apresentação da seita Divino Amor. O filme tem também um narrador, uma criança que dá um toque de fábula ao enredo, ainda que sua voz forte e carregada de personalidade conduza o espectador a uma fruição poética daquele universo criado por Mascaro. Com frases impactantes e que têm tom de lei, o filme se ancora em premissas como "quem ama não trai, quem ama divide" de modo a convidar o espectador a sofrer junto de Joana a ânsia em tornar-se mãe e fechar o ciclo da Sagrada Família.

Para isso, Mascaro acrescenta tecnologias fictícias e quase absurdas como uma luz infravermelha capaz de aumentar a fertilidade de Danilo (Julio Machado), marido de Joana. Engravidar, portanto, torna-se uma promessa divina, uma espécie de milagre que Joana busca conquistar com sua devoção e fé. Mas em vez de tornar a questão da formação familiar como uma narrativa assexuada, Mascaro em "Divino Amor" deixa claro que a chegada de uma nova vida perpassa pelo sexo e não é um sexo puritano, apesar de ser calcado nos preceitos da fé cristã. No entanto, apesar de todos os esforços do casal, nada parece funcionar. E o próprio casamento de Joana começa a entrar em crise.

É nesses momentos que a protagonista recorre à onipresença do evangelismo, então adaptado à lógica do capitalismo tecnológico. Mascaro criou para "Divino Amor" um drive-thru em que os fiéis podem ser orientados do próprio carro por um pastor sempre pronto para oferecer ensinamentos inspirados pelos escritos bíblicos, porém com uma ambiguidade que só torna Joana ainda mais angustiada. Diante da incapacidade de explicar por que Deus não presenteia sua devota com um filho, o pastor invariavelmente oferece tocar um hino de louvor para que os dois celebrem juntos. O êxtase da fé é vivido pelas personagens mesmo de dentro do carro, enquanto uma fumaça performática preenche a cabine de vidro onde funciona o drive-thru da fé.

Em entrevista, Gabriel Mascaro conta que o roteiro de "Divino Amor" estava em andamento já há quatro anos. Seu interesse pelo evangelismo e seu poder de absorção no Brasil está em sua própria origem. "Venho de uma família de classe média baixa. Cresci num bairro periférico de Recife e vi com muita proximidade o evangelismo pentecostal crescer de forma veloz e muito eficiente por lá. Refletir sobre o projeto de poder evangelista no Brasil foi algo que começou a virar urgente para mim", ele comenta, dizendo que a Bíblia foi seu ponto de partida para criar o mundo fantástico de Joana.

Para o diretor, "fabular o futuro é uma ferramenta fundamental para ler as contradições do presente", daí sua aproximação com as premissas da ficção científica, apesar de "Divino Amor" não necessariamente se posicionar como uma obra pertencente ao gênero. Assim como Margaret Atwood em "O Conto da Aia", Mascaro fala do futuro abordando o presente e tem como seus principais temas a fé, o corpo feminino, a família cristã e a fecundidade.

Do mesmo modo que acompanhamos um Estados Unidos distópico no romance de Atwood, então transformado em série da Hulu, Mascaro vislumbra um Brasil de 2027 que, no entanto, tem nuances demais para se enquadrar em categorias como distópico ou utópico – na realidade, Mascaro sequer acredita nesse binarismo. "A protagonista do filme, Joana, responderia que Divino Amor é um filme utópico, ainda que a personagem seja confrontada com uma surpresa difícil de contornar ou que seu autor/criador não deseje viver nesse mundo criado, mas eu não reduziria o debate à utopia ou distopia. Criei um estado de coisas, formulei problemas e podemos confrontar o nosso presente com esse mundo", explica o diretor.

O maior interesse de Mascaro é, portanto, trazer o debate estético sobre religião, arte e política: "Isso é, para mim, uma questão fundamental para refletir sobre o fenômeno do evangelismo no Brasil, já que sua marca é a ruptura com a tradição da arte sacra." Como cineasta e artista visual, Mascaro possui conhecimento histórico sobre arte para embasar seu retrato do evangelismo brasileiro em "Divino Amor": nada é por acaso ou simplesmente orientado pelo que é esteticamente atraente. "O evangelismo para a história da religião é, na verdade, algo equivalente ao que foi a arte conceitual para a história da arte. No evangelismo, a arte sacra e seus objetos materiais de adoração cedem lugar ao minimalismo arquitetônico espacial e produção de retórica e performance como criadoras de afetos", ele argumenta. "É uma religião que desmaterializou a tradição da fé para o campo sublime e do êxtase pela palavra e pela experiência. Quando os evangélicos negam a iconografia cristã apostólica, curiosamente outros elementos específicos passam a integrar o imaginário evangélico no Brasil: cortinas entrelaçadas, potentes alto falantes à mostra, cadeiras de plástico, fiéis trajando roupa social, pastores falando alto."

No entanto, Mascaro alerta que são justamente esses ícones evangélicos que são trabalhados de forma caricata quando fiéis aparecem em narrativas da cultura pop nacional, por exemplo na televisão:  "Reler esses códigos e projetar um futuro próximo sem ingenuidade e assumindo alguns riscos foi nosso objetivo e isso aconteceu graças à contribuição materializada pelas equipes de arte, trilha sonora, fotografia, elenco e pela fortaleza da atriz que é Dira Paes." E é justamente a atriz, mais conhecida por seus papeis em novelas da Rede Globo, que dá essa virada de chave ao abandonar seu arquétipo mais casto e assexuado da TV para surpreender em "Divino Amor" com a força de sua expressividade corporal em contraste à voz suave. O corpo de Paes, portanto, se torna um instrumento sustentado pela fé, a qual, nas palavras do narrador, se define como "toda certeza que dispensa comprovação."

O que Mascaro buscou fazer em "Divino Amor" foi uma releitura do nacionalismo brasileiro e de uma suposta identidade nacionalista cristã atualizada em improváveis apropriações culturais numa narrativa bíblica e erótica sobre fé e poder. É por isso que no primeiro teaser do longa, somos confrontados por uma visualidade futurista em contraponto a citações contemporâneas que se multiplicam pelas redes sociais. "É uma história universal sobre o desejo pulsante de uma mulher que tem a fé como pilar de sua vida, que espera e procura um sinal divino, e que termina por receber um sinal maior do que estava preparada", comenta o diretor.

É nesse sentido que o filme dá uma reviravolta ao premiar a protagonista com uma gravidez que, no entanto, ao invés de cumprir com seu sonho de formar uma família com o marido, acaba por fazê-la cair em uma armadilha na qual o mistério da fé não é mais aceito como uma explicação: em vez de aconselhá-la, o pastor do drive-thru se revela um agente da igreja com o dever de reportar seu pecado de blasfêmia ao conselho. Assim como hoje se questiona quão laico é o Estado, Mascaro também questiona quão burocrática é a fé, então estabelecendo esse ponto de contato entre instituições que fazem Joana cair em um absurdo digno de mártires.

O nome da protagonista, aliás, parece ter sido especificamente escolhido a partir de figuras emblemáticas da história como foi Joana D'Arc. Além de se inspirar na própria Bíblia, o filme "Divino Amor" também resgata a hagiografia de mulheres mártires cristãs. "A tradição foi registrada na pesquisa da escritora Elisabeth Roudinesco, no livro 'Our Dark Side – History of Perversion'. Ela atenta para a abundância de mulheres que, no seu mais íntimo e secreto, entregaram corpo e vida em busca do êxtase maior", explica Mascaro. "O escritor francês Georges Bataille reforça que 'todo erotismo tem um caráter sacramental' e Joana é uma personagem ambivalente inscrita entre as linhas do martírio, do êxtase religioso e do gozo erótico. E o filme naturalmente tenta articular a ideia de devoção, sofrimento e prazer em um enredo sobre fé, corpo e desejo", conclui Mascaro ainda complementando que, para ele, pensar o futuro é especular mundos possíveis e impossíveis ao mesmo tempo em que o presente reage seja por inspiração, alerta e/ou negação.

Assim como a escultura de Bernini para o "Êxtase de Santa Teresa", "Divino Amor" tem um toque de barroco adaptado às premissas de um cyberpunk renovado e que se adapta ao contexto brasileiro sem cair na nostalgia tropicalista, mas sim ao se atualizar com questões mais recentes para se pensar o futuro a partir do Brasil de hoje. Enquanto  nos Estados Unidos autores de ficção científica se reuniram para pensar o país 'normalizado' após a era Trump, Mascaro acredita que "não teria distopia pior do que imaginar o Brasil voltando ao normal depois de Bolsonaro." Em suas palavras, "não existe normal pós-Bolsonaro." "Bolsonaro é um trauma, mas não deixa de ser um exercício criativo rico e inusitado fantasiar o impossível. É nesse sentido que o filme 'Divino Amor' transcende o debate sobre utopia e distopia."

O filme entra em cartaz nesta quinta-feira.

Sobre a autora

Jornalista e pesquisadora em futurologia. Mestre em semiótica, doutoranda em artes visuais, palestrante, professora e escritora de ficção científica.

Sobre o blog

Artigos sobre os impactos das inovações tecnológicas na sociedade e na cultura com uma pitada de arte e ficção científica.