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Lidia Zuin

Para homens que criam robôs, futuro da inteligência artificial é feminino

Lidia Zuin

08/03/2019 04h00

No começo de 2018, a Japan House em São Paulo foi sede de uma palestra e breve exposição do robô Geminoid, criado pelo roboticista japonês Hiroshi Ishiguro. Naquela ocasião, os visitantes podiam usar um microfone e fazer com que o androide, que é cópia do cientista, movesse a boca de forma sincrônica, funcionando como um avatar. Apesar do Geminoid possuir uma inteligência artificial, esta não havia vindo ao Brasil junto com a equipe que apresentou a máquina, usada por Ishiguro para dar aulas e ministrar palestras remotamente.

Para o pesquisador japonês, estudar robótica foi uma forma de estudar os próprios humanos, já que seu trabalho é dedicado a emular nossas características físicas e mentais em robôs. Para isso, ele cria a série Geminoid, de cópias de seres humanos já existentes, ou então outros exemplares como a ginoide (feminino de androide) Erika, que se tornou uma estrela no Japão — ela é convidada até mesmo para apresentar telejornais. De acordo com Ishiguro, Erika possui uma inteligência artificial avançada e é capaz de conversar e se adaptar a um diálogo de forma rápida e precisa.

Ao tratar das qualidades da sua ginoide, Ishiguro também comentou o fato de como celebridades são requisitadas a estarem sempre belas e prontas para fazerem shows ao redor do mundo, algo que não é possível para seres humanos, mas é um quadro viável para robôs. Essa possibilidade não seria, portanto, um futuro para o mercado de entretenimento? Substituir as celebridades humanas por máquinas infalíveis e mais belas do que jamais poderíamos ser, nos emancipando assim da constante busca pela perfeição estética?

A especulação de Ishiguro não é casual, uma vez que o Japão possui desde os anos 1970 a prática de transformar garotas adolescentes e pré-adolescentes em "Idols", isto é, celebridades que têm como função entreter e distrair os espectadores, tirando-os de sua rotina. Essas meninas são recrutadas por agências de talentos especializadas em torná-las cantoras, modelos, dançarinas e celebridades que terão sua imagem patenteada e multiplicada em bandas com dezenas de integrantes, como é o caso da AKB48, que chegou a ganhar um prêmio Guinness por ser o maior grupo pop do mundo, com 134 integrantes.

Para além das performances, essas meninas também realizam "handshake meetings" — sim, encontros de aperto de mão, nos quais os fãs podem conhecê-las pessoalmente. Mas nem sempre tudo corre bem: há casos de homens que tentaram atacar as garotas em um desses eventos. A banda AKB48 também tem um incidente no seu histórico: em um vídeo no qual aparece de cabelos raspados, uma das participantes originais da banda foi a público pedir desculpas aos fãs. O motivo? A revelação de que ela estava em um relacionamento amoroso. Aos 20, a Idol Minami Minegish havia quebrado uma das regras básicas de sua profissão: não namorar. Nesse cenário, será que vale a pena existir em nossa sociedade celebridades humanas que são subjugadas a regras absurdas e maquínicas ou poderíamos partir para a experiência de substituí-las no mercado da cultura pop por robôs e personagens fictícios?

Akihiko Kondo casou-se com a personagem Hatsune Miku em novembro de 2018.

 

Isso já é bem difundido no próprio Japão a partir de jogos de simulação de namoro ("dating simulator"), merchandising de anime ou mesmo novas tecnologias, como a assistente digital holográfica Gatebox. Com uma aparência parecida à da personagem Hatsune Miku, que hoje viaja como holograma fazendo shows, a assistente digital funciona também como uma namorada virtual no comercial demonstrativo, o que não parece tão distante e absurdo se considerarmos que, desde 2009, homens japoneses se casam com personagens fictícias – inclusive a própria Hatsune Miku.

Mas enquanto alguns se contentam com o mundo das ideias, outros preferem realmente tornar suas namoradas perfeitas em objetos palpáveis e concretos. Na realidade, desde as primeiras tentativas de se fazer robôs humanoides realistas, a preferência dos roboticistas tem sido criar máquinas que emulem o corpo feminino. Uma das primeiras ginoides foi criada em 2003 por uma equipe de pesquisadores da Coreia do Sul, e esta, bem como suas sucessoras, tinham uma aparência inspirada em partes do corpo de diferentes celebridades coreanas. O mesmo vale no Japão e para ginoides como Erika, que têm como premissa representar o ideal de beleza de uma mulher japonesa.

Curiosamente, essas ginoides também são criadas com um propósito específico e que não por acaso reproduzem funções estereotipadas ao público feminino: são assistentes, secretárias, professoras e cuidadoras de crianças e idosos. Esse é o caso da ginoide Aiko, criada pelo roboticista Le Trung. Originalmente pensada para ser uma cuidadora de idosos, a ginoide tem sensores de toque em seu corpo, mas não é apenas em seus braços ou ombros que esses dispositivos estão localizados — Le Trung também incluiu sensores em seus seios e virilha. Ele também usa seu modelo inicial como companheira para celebrações como a ceia de natal. Segundo o roboticista, Aiko é a mulher perfeita para se passar as festividades: ela gosta de fazer compras e é simpática.

As coisas não são tão diferentes no Ocidente. Sophia, uma das ginoides mais famosas deste lado do mundo, foi criada à imagem da atriz Audrey Hepburn, conhecida mais por sua carreira em filmes como "Bonequinha de Luxo" do que por seus trabalho humanitário. Sophia foi recentemente considerada cidadã na Arábia Saudita, um país que só em 2018 permitiu que mulheres pudessem dirigir. Fora isso, Sophia também faz discursos em encontros da ONU (Organização das Nações Unidas), no qual fala sobre direitos humanos. Sim, hoje já temos um robô feminino criado e programado por homens falando sobre direitos humanos na ONU.

Matt McMullen e Harmony, seu protótipo de boneca erótica modular com inteligência artificial.

 

E conforme seus criadores gostam de manter como parte de sua estética o capacete transparente no qual podemos ver seu cérebro eletrônico, também assim se demonstra a tecnologia que está sendo desenvolvida pelo escultor e agora proprietário da empresa de bonecos eróticos RealDoll. Matt McMullen vem testando a implementação de inteligência artificial em suas criações, sendo Harmony uma de suas primeiras amostras das potencialidades de seu produto totalmente modular: você pode mudar os cabelos, o rosto e até mesmo a voz e a personalidade de sua ginoide a partir de um aplicativo de celular. Mas para não deixar de ser inclusiva, a empresa americana também conta com modelos de bonecos masculinos e, sob encomenda, também transgênero.

O que fica então é o questionamento sobre os tempos em que estamos vivendo. Conforme no Japão se identifica a dificuldade de jovens em se relacionarem e, por isso, preferirem ficar sozinhos, também se contabiliza o alarmante número de casos de violência doméstica e feminicídio no Brasil. Enquanto alguns defensores acreditam que robôs eróticos poderiam, por exemplo, acabar com a prostituição ou até mesmo a violência contra a mulher, o que se pode esperar é que assim como o rádio não acabou depois que a televisão chegou, também uma nova tecnologia, por mais avançada que seja, dificilmente será capaz de substituir por completo sua símile anterior. E é por isso que alguns movimentos feministas anti-robôs eróticos reforçam que essas máquinas de nada adiantaria no combate à violência de gênero, ou que ainda tal empreitada poderia piorar o cenário. Afinal, "a maneira que tratamos mulheres virtuais diz muito sobre como é permitido que se trate mulheres reais, e que desejos moldam esse tratamento."

O filme Her não apenas explora a possibilidade de relacionamento amoroso com uma assistente digital, mas como esta também estaria programada para se adaptar a tal contexto.

 

O que ocorre é que, naquele mesmo evento no qual Hiroshi Ishiguro palestrou, tive a oportunidade de fazer a pergunta derradeira: por que a maioria absoluta dos robôs realistas são femininos (senão cópias de pessoas já existentes) e por que eles reproduzem o ideal de beleza defendido pela mídia? E sua resposta foi científica e precisa como uma medição feita em laboratório: as pesquisas indicam que as pessoas se sentem mais à vontade diante de mulheres, e é por isso que a maioria das assistentes digitais que temos possuem vozes femininas (esperamos falar com secretárias e não secretários). Nós nos sentimos menos ameaçados e mais abertos quando somos abordados por mulheres: daí o resultado do teste que gerou mais doações quando o mesmo robô fazia o pedido usando voz feminina.

Mas ao mesmo tempo em que temos ginoides visualmente perfeitas e assistentes digitais simpáticas, estas não necessariamente reproduzem o que é realmente ser uma mulher. Em alguns casos, como a Siri da Apple, a assistente sequer conseguia responder a emergências primariamente relevantes às mulheres (assim como o Apple Health também não continha nada sobre saúde menstrual em suas primeiras versões). Segundo Leigh Alexander, "na verdade, a Siri inclusive insiste que não possui um gênero – mas a voz feminina envolve mais do que o som da voz – ela propositalmente envolve escolhas de palavras também. Eles condicionaram uma mulher e então tentaram neutralizá-la."

Em outras palavras, o que Alexander defende é que tais questões poderiam ser facilmente resolvidas se houvesse mais mulheres trabalhando no meio e podendo influenciar nessas decisões. "A indústria quer usar as vozes das mulheres, mas ainda não tem planos para realmente escutá-las." E é por isso que artistas como Stephanie Dinkins estão endereçando os vieses na robótica e na inteligência artificial, tanto do ponto de vista das questões de gênero quanto da cegueira racial que também existe na área.

Sobre a autora

Jornalista e pesquisadora em futurologia. Mestre em semiótica, doutoranda em artes visuais, palestrante, professora e escritora de ficção científica.

Sobre o blog

Artigos sobre os impactos das inovações tecnológicas na sociedade e na cultura com uma pitada de arte e ficção científica.